O ser laboral camuflado no ser afetivo
DA VAGA DE SALA – Especial Festa do Cinema Francês
“Depois de três filmes politizados, muito duros, muito fortes, num curto espaço de tempo, tive a necessidade de recuperar o fôlego; sentia-me perdido a pensar na passagem do tempo, a refletir sobre se vivemos no lugar certo, com a pessoa certa, se estamos a seguir no bom caminho [da vida]. Escrevi este filme a meio da Covid [19], com muita inquietude, morbidez e questões existenciais entre a vida e a morte”, assim ‘justificou’ Stéphane Brizé, de viva voz, a existência de ‘A Vida Entre Nós’ (2024), em antestreia no Cinema São Jorge esta sexta-feira à noite, na Festa do Cinema Francês. Depois dessa referida trilogia – ‘A Lei do Mercado’ (2015); ‘Em Guerra’ (2018); e ‘Um Outro Mundo’ (2021), precisamente os três filmes que conhecia do realizador – dedicada ao mundo laboral e ao severo impacto da transformação do trabalho, incluindo a globalização e um neoliberalismo em vertiginosa aceleração, no trabalhador (francês), especialmente na figura do operário fabril, Brizé ensaia uma espécie de troca de um ser eminentemente laboral – personificado com tripla mestria em Vincent Lindon, o operário desempregado e desenquadrado no novo mercado laboral (‘A Lei do Mercado’); o delegado sindical que comanda os operários após anúncio de despedimento coletivo numa fábrica (‘Em Guerra’); o diretor de uma unidade fabril dividido entre a justiça social e o humanismo perante os trabalhadores e o cumprimento da agenda neoliberal de uma multinacional (‘Um Outro Mundo’) – por um ser afetivo, ou melhor, por seres afetivos, pois entrega essa missiva a um par romântico, Mathieu (Guillaume Canet, de quem gostei particularmente em ‘Uma Vida Melhor’ [2011], de Cédric Kahn) e Alice (Alba Rohrwacher, irmã da realizadora Alice [Rohrwacher]), porém a síndrome laboral das personagens da trilogia prossegue, ainda que de forma velada, em ‘A Vida Entre Nós’.
Mathieu é ator comediante de cinema, com sucesso e mediatismo, mas a sua verdadeira paixão é o teatro. O medo que o assola fê-lo largar a peça teatral que finalmente iria interpretar, em Paris, e fugir para um retiro (existencial) à beira-mar, alguns dias, num hotel de tratamentos termais. Vencido pela vida, assim está, embrulhado num roupão branco, solitário, como o velho que vemos a arrastar-se no andarilho, que surge nos primeiros planos do interior da estância termal, e que prende o olhar vazio de Mathieu. A personagem de Canet assemelha-se um tanto ou quanto a Philippe de ‘Um Outro Mundo’: ambos divididos entre o que querem (ou julgam querer) e, por outro lado, o que devem fazer para salvaguardar um modus vivendis assente em conforto financeiro, que ambos conquistaram. Mathieu é questionado por um empregado de mesa se ganha bem enquanto ator, pois tem uma amiga que faz teatro e é muito mal paga – ele faz cinema, é conhecido do grande público, e obviamente recebe outro tipo de cachet -, o luxuoso hotel, que chega até a ser satirizado pelo filme em alguns pormenores, é a paisagem que reflete esse seu desafogo. Também o protagonista de ‘Um Outro Mundo’, diretor de uma fábrica, foi cedendo nas suas convicções humanistas no trabalho e foi prescindindo do tempo dedicado à família em prol de um património financeiro que vemos a ser escalpelizado aquando do divórcio, ou da sumptuosa casa que depois é colocada à venda – a câmara cola-se ao rosto de Philippe enquanto os interessados realçam todas as suas virtudes e valências. Ambos, Mathieu e Philippe, socorrem-se de comprimidos que acalmam ou relaxam – supomos que esse seja o propósito -, ambos correm na passadeira desalmadamente, mas para lado nenhum. É curioso que nesse último filme dessa trilogia laboral, Brizé ensaia já a tal exploração do ser mais afetivo – na relação com a mulher, de quem se está a divorciar, e com o filho, mergulhado em problemas do foro psiquiátrico -, mas sem conseguir ser profundo, continuando a sobrepor-se o ser laboral que havia emergido na indignação submissa que vemos em ‘A Lei do Mercado’ e na cólera que presenciamos no ‘Em Guerra’.
E sendo o filme rodado em terras de mar da Bretanha o acaso [o par hasard de Rohmer] não poderia falhar à chamada. Alice, que fora namorada de Mathieu há uns 15 anos em Paris, vive por aquelas bandas e, devido ao mediatismo do ex-(namorado), fica a saber da sua estadia no hotel. Com um francês compassado, salpicado por um sotaque transalpino, Alice enriquece o diálogo de ambos à mesa, como se as palavras ditas fossem guarnecidas por uma longa ternura – além de nós, espectadores, o próprio Mathieu parece querer saborear todos os vocábulos ternurentos de Alice, professora de piano, pedindo ao garçon para desligar o jazz, que lhe é enervante e que até pode ser substituído por zumba, mas quando o som do zumba é levado à letra pelo sistema sonoro eis que Mathieu clama por silêncio: este acaba por ser um dos vários momentos cómicos do filme, uns mais bem originados, situados e enquadrados do que outros, diga-se, mas nos diálogos entre Mathieu e Alice caíram sempre bem, há um sentido de humor e uma vontade de rir que ambos partilham e que os aproxima. À mesa ou ao balcão, nos diálogos de Alice e Mathieu, a câmara quase que estaciona – há quase sempre um ténue movimento, confere uma certa sensação de vivacidade, como que quebrando a rigidez do plano fixo, mas, ainda assim, muito longe da movimentada, e até desenfreada, câmara nos filmes da trilogia laboral, que agudizava muito a tensão – e prolonga-se nos planos, e aí vamos observando e sentindo a angústia, a tristeza, a dor de Alice, agora pelo seu rosto, pela sua expressão facial, pelos olhos que não escondem a ferida que o passado criou e que ainda está por sarar, vai vivendo de curativos. Alice foi abandonada por Mathieu – trocada por uma mulher empoderada da TV que apenas ouvimos nas conversas telefónicas com o marido, em que emerge como uma autêntica gestora de carreira deste, pragmática, objetiva, tal como uma CEO de empresa, como vimos nos filmes anteriores de Brizé – e, consequência disso, deixou Paris e as suas aspirações profissionais, de carreira, enquanto pianista. É como se esse amor falhado tivesse levado consigo outras ambições, outras vontades, e talvez essa seja a maior mágoa: o ser afetivo anulou o ser laboral de Alice. Num plano em que a câmara se imiscui no meio de convivas em casa de Alice – o marido e um casal que não vemos -, mas foca apenas o rosto dela (bem ao estilo de Brizé), lemos no rosto de Alice, ao ouvir a conversa dos demais, todos médicos aparentemente, esse desencanto enquanto um ser laboral que se demitiu demasiado cedo dos seus projetos – apesar de Alice dar aulas de piano na comunidade. O piano de Alice que depois vemos a tocar sem mãos, em piloto automático, metáfora da vida atual de Alice. E quando Alice envia a Mathieu um vídeo da amiga de 78 anos, com quem partilha confidências, esse vídeo apodera-se do ecrã como se fosse uma caixa de ressonância de Alice: a vida pode mudar de caminho, ou o caminho da vida pode mudar, por mais longo que ele já seja, vamos sempre a tempo. Mas o plano inicial e o plano final, que só diferem no sentido do carro na estrada, mostram-nos que para Mathieu a vida retomará o seu rumo.
Sendo vontade de Brizé atender-se sobre questões existenciais, que Alice corporizou mais e melhor do que Mathieu, e tendo escolhido a paisagem do mar no Inverno, em tese perfeita para reflexões profundas – silenciosas ou verbalizadas em diálogos -, porquê usar apenas o ruído do mar numa cena inusitada, despropositadamente cómica, entre Mathieu e o professor do hotel, preferindo impor a música para nos embalar durante planos gerais e panorâmicas na praia e no mar, e impedir-nos também de refletir? Talvez seja um certo receio ou aversão ao silêncio, ao vazio, a um hipotético tédio que o seu realismo social-laboral tem dificuldade em contemplar.