Maurizio Cattelan poderá chamar-lhe “Comediante”, sem dúvida. No entanto, o que se vê é nitidamente uma banana colada à parede com uma fita adesiva de cor cinzenta.
O que me traz hoje cativa não é o “Vertumno” que abre imageticamente este texto e pintado por Giuseppe Arcimboldo entre 1590 e o ano seguinte, a dois anos também da morte deste artista, ocorrida em 1593. O pintor tão inventivo que concebeu este original retrato, tanto se encastra no maneirismo italiano, como na psique humana colectiva, erigindo-se enquanto marco da memória universal. Recuar a Arcimboldo, e ao século XVI, para iniciar uma reflexão sobre o dispositivo intitulado de “Comediante”, significa tentar filiar a proposta de Maurizio Cattelan na linhagem da arte que de alguma forma interfere, inventiva e reactivamente, na percepção da realidade. Mas será de facto possível fazer uma inscrição deste tipo para a “banana” contemporânea? Não, e não apenas porque Arcimboldo, com alguma probabilidade, não estaria rodeado de bananas, tanto que as não inclui em “Vertumno”, por exemplo: apesar de trazida para a Europa pelos romanos, no século I a.C., esta fruta apenas viria a adquirir maior destaque no século XX; mas também porque, sendo rigorosa, teremos em René Magritte e no seu “Isto não é um cachimbo” a continuidade, ainda que no avesso, do trabalho a que se propôs o pintor quinhentista.
Portanto, afastada a hipótese de “Comediante” radicar no longínquo século XVI por afinidade morfológica, e de Maurizio Cattelan emparceirar com os homens de criatividade abismática que pintaram e criaram sob o signo da invenção de Outro Mundo, eis que se exige uma análise mais, digamos, rizomática. Olhando de frente o século passado apresentam-se duas ordens de fenómenos em que Cattelan se poderá perfilar: Marcel Duchamp – ícone do ready-made, e Andy Warhol – ícone da Pop Art; propositadamente refiro inicialmente os nomes destes artistas, e não a referência a quaisquer das suas obras, já que ambos contribuíram para a inflação do nome do artista como marca, e não já da obra de arte como ar que passa entre nós. Tanto a célebre “A Fonte”, pertencente ao ano de 1917, como a famosa “Banana” que serviu de capa a um disco dos Velvet Underground, e que Warhol criou em 1965, podem e devem ser trazidas para a discussão em torno de “Comediante”. Aliás, nos primeiros exemplares do disco dos Velvet Underground a imagem visível e imediata da banana correspondia a um adesivo que, se retirado, deixava ver a área correspondente pintada de um alaranjado com uma pitada de rosa.
Desta forma, vemos como Maurizio Cattelan vai encarreirar com a via dadaísta dos inícios do século XX, à distância de 100 anos: alinhando com o absurdo, promovendo o colapso das obras, lidando com o peso do próprio sistema das artes. O problema, todavia, emerge quando nos lembramos de que “A Fonte” começou por ser “percebida” exactamente como um urinol, para agora, no século XXI, uma banana, nada mais nada menos do que uma peça de fruta, ser confundida com um “Comediante”: parece-me que isto é aquilo a que poderíamos chamar de salto quântico da percepção. Note-se que a arte se ancora essencialmente na sensação; seguindo esse pressuposto, quando se virou o urinol de pernas para o ar e nasceu, assim, “A Fonte”, o que vem até nós como proposta sensitiva? Será que vemos um dispositivo a disparar para o sistema das artes? Não, claro que não: vemos um objecto de casa de banho masculina invertido, que pode até aludir à superfície do sexo feminino, com alguma probabilidade provoca vontade de mictar porque o título invoca uma sonoridade específica, e que se inscreve numa simbologia de ambiguidade óbvia; em todo o caso, remete para um universo masculino de descarga e apresenta-se numa órbita de sujidade de excreções evidente.
Resta-nos, agora, encetar a ligação à Pop Art, e também aqui aludir à célebre Factory, estúdio imaginado, promovido, alimentado e oleado por Andy Warhol: um lugar privilegiado de tráfico de influências. “Comediante”, de Maurizio Cattelan, precisamente se inscreve nesta linhagem de tráfico de influências, agora num lugar aberto perfilado enquanto i/mundo dentro do Mundo. A obra de arte, e disso não tenhamos quaisquer dúvidas, estabelece laços cruciais com a vida: mas raramente por via literal, pois necessita de sujeitar a realidade a uma decantação imaginal que bebe, tanto no visível, como no invisível. A obra de arte vem então como espaço de encaixe etéreo, ainda que se manifeste através de signos físicos concretos, apresentando-se através de um exercício que podemos considerar de condensação. A “banana” que Cattelan vem propondo não procede à decantação imaginal, nem à condensação do invisível, logo, não dá a ver a realidade transfigurada.Aleksandr Soljenítsin escreveu num pequeno livro intitulado venho dizer-vos a verdade, cuja publicação veio na sequência de lhe ter sido atribuído o Prémio Nobel da Literatura no ano de 1970, o que se segue: “O gesto simples de um homem simples e corajoso é não partilhar na falsidade, não apoiar actos falsos! Isso poderá espalhar-se pelo mundo – mas não com a minha ajuda! Artistas e escritores podem conseguir mais: eles podem derrotar a falsidade! A arte sempre se saiu vitoriosa e sempre será vitoriosa na luta contra a falsidade! Abertamente, de maneira irrefutável! A falsidade, pode resistir a muitas coisas nesse mundo, mas nunca à arte. […] uma palavra de verdade terá mais peso do que o mundo inteiro!” Portanto, na minha visão, Maurizio Cattelan contribui para espalhar um equívoco lamentável, triste e perigoso no que respeita à arte contemporânea, e que se relaciona com a penhora dos sentidos humanos quanto à apreensão, não apenas das obras de arte, mas de todo o Mundo, com o que se retrai a capacidade, tanto individual, como colectiva, de fazer, precisamente, mais Mundo. “Comediante”, por tal, não se inscreve no hiper-realismo, nem se inscreve em nada que possa ser válido para o nosso humano entendimento, mas mostra à saciedade os tráficos de influência globais em torno de uma Arte Internacional marcada por um nomadismo gourmet.