'Gabriel e a Montanha', de Fellipe Barbosa (2017)

 O son(h)o da morte

‘Gabriel e a Montanha’, de Fellipe Barbosa
DA VAGA REALIZADOR DO MÊS

Há já uns bons anos lembro-me de ter visto um filme que me impressionou pela força com que conseguiu contar, e prolongar, uma narrativa cujo desfecho já havia sido escarrapachado pela História e, mais ainda, pelo próprio título (do filme); não havendo como a ficção contornar esse acontecimento da realidade, restava ao filme a estoica tarefa de manter-nos ligados até que o momento aguardado chegasse, pois ele iria mesmo chegar, como já sabíamos de antemão. Refiro-me a ‘O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford’ (2007), de Andrew Dominik.  Lembrei-me dele enquanto via ‘Gabriel e a Montanha’ (2017), de Fellipe Barbosa –  DA VAGA REALIZADOR DO MÊS, depois de já aqui termos trazido ‘Casa Grande’ (2014)  -, precisamente porque, ao contrário de Andrew Dominik, que só ao cabo de dois terços de filme nos dá o tiro de Robert (Casey Afflek) que mata Jesse (Brad Pitt) pelas costas, o cineasta brasileiro abre o filme com o desvendar do corpo morto de Gabriel (João Pedro Zappa), que soçobrou na montanha, no monte Mulanje (Malawi) – tal como na história da vida real de Gabriel Buchman, um brasileiro de 28 anos, amigo do realizador Fellipe Barbosa, que em 2009, após quase um ano de mochila às costas por vários países da Ásia e de África, acaba por morrer de hipotermia, no Malawi (faz fronteira com Moçambique), sendo o corpo encontrado 19 dias após a morte (de acordo com o último registo fotográfico da sua máquina). Enquanto Andrew Dominik investiu no desenvolvimento da relação entre os cowboys Jesse e Robert, agudizando a tensão ao máximo – como um balão que vai enchendo até que rebenta- rumo ao disparo mortal, por seu lado, Fellipe Barbosa  prontifica-se a anular no imediato o caminho até à morte, transformando o final num início. Em ‘Gabriel e a Montanha’ a morte é esvaziada e entregue ao sono (no início do filme) que procede do sonho (no final do filme); tal como vimos em ‘Casa Grande’, a primeira e a última cena unem-se umbilicalmente e condensam todo o filme. Nos derradeiros instantes de vida do protagonista, mesmo no final do filme, os olhos dele fecham e surge uma imagem de sonho, da montanha difusa, a anteceder o desfilar de fotografias captadas pelo próprio Gabriel Buchmann; um sonho a dar depois lugar ao sono da morte, que, após a descoberta de um dos dois homens que colhiam capim no monte (no arranque do filme), a câmara vai nos mostrando ao longe, focando e aproximando lentamente, mas sem deixar de salvaguardar uma distância de segurança, face ao corpo, que permita, precisamente, manter-nos emocionalmente distantes da morte de Gabriel. E mais, Fellipe Barbosa faz uso do poder do cinema para proteger a realidade de si mesma, optando por mostrar um corpo – e, relembro, a uma distância considerável – sem quaisquer marcas de decomposição, cristalizando-o num sono profundo. E sim, diria que o realizador brasileiro abraçou a crítica de Jacques Rivette‘O  travelling  de  Kapò, que depois o crítico Serge Daney  faria dela um verdadeiro mandamento, sobre a abjeção no cinema, a propósito do filme do italiano Gillo PontecorvoKapò: Uma História do Holocausto’ (1960), em que um movimento de câmara enquadra o cadáver do homem eletrificado no arame farpado, promovendo e exponenciando assim o horror daquela morte. No filme brasileiro o corpo não vira cadáver exposto. A partir daqui ficamos leves e aliviados, prontos para submergir na aventura de Gabriel.

Se é verdade que o cinema protegeu a realidade de si mesma no filme, transformando-a, como acabei de referir, é depois a realidade, e a sua recriação, que condiciona o cinema, no revisitar dos últimos 70 dias da viagem de Gabriel que a longa-metragem nos dá a ver. Socorrendo-se de apenas dois atores (profissionais), para encarnar Gabriel e a namorada Cristina Reis (Carol Abras)  – ela junta-se a ele numa parte da longa viagem, entrando e saindo durante o filme -, o restante elenco é composto por pessoas com quem o próprio Gabriel Buchmann se cruzou por entre o Quénia, a Tanzânia, a Zâmbia e o Malawi: a família que o acolheu em casa, onde um belo plano de conjunto nos mostra Gabriel e toda a família juntos a cantarem, família que fez dele um guerreiro Masai [uma tribo no Quénia], com vestimenta a rigor e espada à cintura, e cujo filho entretanto nascido herdou o nome Gabriel; guias para subir as montanhas, John Goodluck, que o arrastou até ao topo do Kilimanjaro (Tanzânia), e o último guia de Gabriel, aquele que ele abandonou antes do desfecho já conhecido; o guia do Safari que Gabriel fez com a namorada e com o qual se desentendeu, o único desaguisado que vemos na história; um camionista que dá boleia, comida, guarida, cama partilhada e um curativo para a mão, solidariedade devolvida com as mãos no descarregar da madeira transportada, com a oferenda das botas ocidentais e com um abraço sentido; a estrangeira que repousa na última casa antes do fatídico monte e onde ele faz a última ceia. No meio da recriação da realidade que é o filme, vamos ouvindo breves testemunhos daqueles que se cruzaram com o viajante carioca, em vozes que se misturam com as imagens que vamos vendo, como apartes da realidade, sem desvirtuar a ficção onde estes agora vivem, pelo cinema, uma nova-breve-vida-aventura com a figura de Gabriel; num desses testemunhos ouvimos o último guia dizer que se lembra dele todos os dias, quando adormece e quando acorda, parecendo eternizar um sentimento de culpa por não ter conseguido impedir Gabriel de prosseguir montanha acima.

A incursão da namorada na história acaba por ser relevante para evidenciar a personalidade de Gabriel mais dentro do seu mundo, do seu meio, com toda a sua obstinação, cegueira, teimosia, em seguir o aprofundamento do seu (próprio) caminho, numa espécie de eu com os outros e, ao mesmo tempo, com ninguém. Quando se despede de Cristina no aeroporto, na Zâmbia, apesar da emoção na despedida, logo a seguir, no exterior, com o letreiro do aeroporto enquadrado, vemos Gabriel já sozinho novamente, a saltitar de pino em pino, como uma criança, exalando toda a sua euforia pela liberdade, e até libertação, que a câmara de Fellipe decide introduzir, uma clara intenção do autor, pois ali não havia nenhuma testemunha de (e para) recriação da realidade.

E é atrás dessa euforia que Gabriel sobe a última montanha e é essa busca eufórica de liberdade e libertação que o amigo Fellipe Barbosa realça, acima de tudo o resto.

‘Gabriel e a Montanha’, de Fellipe Barbosa (2017)
Visionado em Filmin Portugal