‘O Dia Seguinte’, de Hong Sang-soo
| DA VAGA REALIZADOR DO MÊS
Esta manhã, entre os pingos da chuva, voltei a deparar-me com o mesmo homem que há não muito tempo tinha visto, numa sequência de três dias consecutivos, rigorosamente no mesmo lugar: sempre no mesmo jardim, sempre sentado no mesmo banco, inclusive na mesma ponta, sempre de perna cruzada a dormitar com a cabeça tombada, sempre com um boné, sempre com um jornal (Correio da Manhã [CM]) aberto e dobrado, sempre com a mesma mochila junto aos pés. Hoje, vi o mesmo homem a chegar ao sítio do costume, precisamente no mesmo banco do jardim, preparando-se desta feita para se sentar, na mesma ponta, enquanto tirava a mesma mochila das costas e empunhava novamente o jornal (provavelmente mantendo a fidelidade ao CM, provavelmente a edição de hoje). Eis a repetição da vida no seu esplendor; uma repetição recíproca, se observada, pois se este homem não tivesse dormitado naqueles três dias seguidos teria constatado, de igual modo, a repetição da minha passagem no mesmo lugar, sensivelmente à mesma hora. E estando ambos tão perto de uma basílica, mesmo ali ao lado no nosso campo de visão, fôssemos ambos crentes e assíduos na prática religiosa e, acredito, teríamos ali um outro lugar comum a ambos, onde a repetição poderia dar-se ainda mais vezes. Neste caso, não sendo eu frequentador de culto religioso – obviamente só me excluo a mim próprio, nada conheço da vida do dito senhor -, são os prazeres do quotidiano, leia-se, o usufruto do sol (quando brilha), do ar das árvores, do verde do jardim, de um silêncio q.b., que fazem a realidade expressar-se pela repetição. A certa altura de ‘O Dia Seguinte’ (2017), de Hong Sang-soo (escolha em DA VAGA REALIZADOR DO MÊS para Março), ouvimos a protagonista questionar assim o protagonista: “Porque é que vive?”, e perante a ausência de uma resposta concreta, prossegue: “É possível viver sem saber porquê?”. Posto isto, o homem responde que as palavras não são capazes de expressar a realidade, e que a realidade é para se sentir. Crença divina, alicerçada em palavras que servem de guia, de um lado; livre-arbítrio, guiado pela experiência sensorial, de outro lado. Ambas as visões existencialistas em debate à mesa do restaurante encontram na repetição do quotidiano um mundo comum, um mundo que o cinema de Hong Sang-soo repete de modo prodigioso.
Perdido, aprisionado na sua realidade, assim vemos o homem-protagonista (Kwon Hae-hyo), editor de livros, que a primeira de várias panorâmicas (no filme) traz para o meio da casa, na solidão da madrugada, como quem não sabe o que fazer à vida. O relógio de parede onde o tempo circula pelos ponteiros aponta para as 4h30 da manhã; as insónias mandam tomar o pequeno-almoço e sair de casa, não sem antes um ríspido interrogatório da esposa, acerca da sua perda de peso. “Tens uma namorada?”, questiona ela. Embalados por outra suave panorâmica – tão características da estética de Sang-soo -, vemo-lo sair do prédio para romper o escuro da madrugada, num percurso que se repete, de casa para o trabalho e vice-versa, nas ruas, na estação de metro, dentro da carruagem, e onde as memórias frescas desses mesmos lugares, quer na companhia da amante-secretária-da-editora (Kim Sae-byuk), quer no pós-rompimento, vêm à tona e constroem o filme em fragmentos que se unem e se separam, entre o amor ébrio e o choro. Mais à frente, quer na editora, quer no restaurante onde se almoça, a realidade fragmenta-se entre momentos do homem-protagonista com a amante, e outros momentos com a nova secretária da editora (veio substituir a amante-secretária), numa realidade que se vai repetindo em círculo.

Em apenas um dia de trabalho na editora, que viria a ser o único, Areum (Kim Min-hee) – a única protagonista cujo nome soa no filme, talvez porque o seu significado seja beleza, ela que acredita nas coisas belas -, trazida ao interior (da editora) também por uma panorâmica, entra rapidamente na realidade circular do patrão, substituindo a sua antecessora à mesa de almoço no mesmo restaurante – local onde se dá o debate existencialista do filme, já referido de início -; repetindo a dose ao jantar, agora já a beber garrafas de soju com voracidade idêntica à ex-secretária-amante e ao patrão; ganhando direito ao tratamento informal entre ambos; colhendo os elogios dele, quer ao seu intelecto, quer à singularidade singela das suas mãos; servindo até de saco de pancada da esposa dele; saltando de um triângulo com a esposa dele para um outro triângulo com a amante dele. Tudo isto num só dia, em apenas algumas horas que um outro relógio de parede nos mostra nos ponteiros que circulam.
Volvido mais tempo, o suficiente para o patrão já não se lembrar da cara da funcionária por um dia, Areum volta à editora para uma visita, como que ensaiando uma nova entrada naquela realidade circular dele, no mesmo sítio, na mesma mesa, com uma conversa de apresentação repetida, e onde se ouve sem se ver uma voz desconhecida a questionar o patrão onde se almoça hoje. As rodas da mota do estafeta dão seguimento à realidade circular e o almoço vem do restaurante até à editora, o frio da neve assim suscita.