'Sob a Chama da Candeia', de André Gil Mata

Uma casa como um novelo de linha (do tempo e da vida)

‘Sob a Chama da Candeia’, de André Gil Mata
|DA VAGA DE SALA

A casa e o luto. O luto e a casa. Há sensivelmente um ano, lembro-me de ter escrito sobre o luto – após a perda de um ente querido – e a relevância do seu exercício no interior da casa da pessoa que morre, no espaço físico indubitavelmente mais impregnado da sua presença. Foi precisamente depois de ver The Grief of Others  (2015)  [‘O Luto dos Outros’], de Patrick Wang, no Outsiders | Ciclo de Cinema Independente Americano. Refleti sobre a relação luto-casa a partir de uma tríade: o filme mencionado, sobre o qual ia escrever; um outro filme que me veio à memória, o icónico ‘Viagem a Tóquio’ (1953), de Yasujiro Ozu; e a morte recente da minha avó (a última dos quatro avós a morrer). Refleti sobre a ausência do exercício do luto na casa da minha avó, entretanto vazia de pessoas, e sobre como essa ausência contribuiu para acelerar o seu desaparecimento e apressar o virar de página dos familiares, de regresso à mundanidade do quotidiano. Em The Grief of Others, naquele plano que vale por todo o filme, vemos a casa como palco inamovível do luto da família; e no filme de Ozu ficamos juntamente com o viúvo solitário a fazer o luto – depois dos filhos voltarem à tal mundanidade do quotidiano – na casa onde a esposa vivera toda uma vida com ele e onde acabara (literalmente) por morrer. Depois de ver ‘Sob a Chama da Candeia’ (2024) fico com a sensação de que o realizador André Gil Mata sentiu também essa necessidade de fazer o luto da (sua) casa de família, e especialmente da sua avó: filmada ainda com vida em ‘Cativeiro’ (2012) e que agora, 12 anos depois, volta a ganhar vida no corpo da atriz sérvia, Eva Ras (figura que André Gil Mata, confesso admirador, já evocara em 2016 no seu filme ‘Como me Apaixonei por Eva Ras’).

O derradeiro plano do filme reforça esta minha convicção da necessidade de André Gil Mata em fazer o luto da casa enquanto faz o luto da avó, que entretanto perdera, através da sua câmara, claro está. Nesse longo plano-sequência, a câmara parte do rosto da avó Alzira (Eva Ras), que dorme na sua cama, para de seguida percorrer – entrar, espreitar, olhar, sair – todos os compartimentos da casa, atravessando simultaneamente o espaço, o tempo (enfatizado pelo ruído dos ponteiros do relógio) e a vida, através das pessoas que a habitaram – e que são personagens do filme – e das suas diferentes figuras ao longo da linha do tempo, uma linha de um novelo que a câmara parece estender por todo o corredor até embater numa janela fechada, escurecendo o ecrã e anunciando o fim da linha, mas, na verdade, esse término só acontecerá com o puxar da linha, pela câmara ainda e sempre em sequência, para trás, no sentido inverso, para percorrer todo o mesmo espaço (leia-se, toda a casa), mas agora num tempo presente (um último tempo ou instante), facilmente constatável pelas camas e poltronas vazias que vamos observando, até a linha ser enrolada totalmente pela câmara e pousar ou pausar definitivamente no rosto de Alzira, que continua de olhos fechados – eis o fim da linha.

Esta imagem que mentalmente vamos criando da câmara como que a puxar a linha do tempo e da vida ganha absoluto sentido a partir de um outro plano – este é fixo – onde vemos Alzira e a empregada de uma vida, Beatriz (Márcia Breia)  – as últimas residentes e resistentes da casa da família -, de frente uma para a outra, a enrolarem a linha no novelo sem se olharem, com as cabeças tombadas ou inclinadas propositadamente para lados opostos. Ambas envelhecidas, entretêm-se, ou enfadam-se, a enrolar e a recolher a linha, como a linha do tempo e da vida, cuja extensão da mesma parece ser proporcional ao afastamento de ambas. Quase no início do filme, no primeiro momento em que vemos as duas juntas, na mesa do pequeno-almoço, já constatáramos esse distanciamento – só se ouve o mastigar e, ao longe, o cocorocó dos galos -, com um quê de pai e filha à mesa em ‘O Cavalo de Turim‘ (2011), de Belá Tarr (o mestre húngaro, influenciador do cinema de André Gil Mata), a vida verga-os àquela proximidade. Um fim de linha que ambas vivem, uma linha que vemos também Beatriz a puxar quando dá ao pedal na máquina de costura – uma imagem que tão bem ilustra o seu papel enquanto motor operacional da casa.

Aquelas duas mulheres que agora se arrastam num chinelar pesado, numa solidão profunda, bem expressa pelos suspiros, e pela respiração, carregam ambas as cruzes que o espelho do quarto devolve como estando cravadas nelas – os enquadramentos são sublimes – cruzes da vida, da passagem do tempo. Tempos que vemos a irem e a voltarem na casa, percorrendo a linha, cruzando-se, sobrepondo-se, unindo-se, fundindo-se, transportando-nos para a circularidade da vida, que é como o movimento da rotação da terra que a certa altura ouvimos uma das crianças a descrever enquanto estuda – e este momento até acaba por atenuar um pouco a excessiva dispersão que o filme sofre com as analepses até à infância. Circularidade essa que a câmara esculpe, desenha, rodando com delicadeza, suavidade, em torno da mesa na sala de jantar, enquanto Alzira põe (num tempo passado) a toalha na mesa, desfazendo os vincos, e o marido folheia o jornal sentado na poltrona; a subtileza é tal que a câmara parece ajustar-se à forma geométrica (retangular) das cadeiras e da mesa de madeira e, a meio de uma das voltas, a câmara fixa nas costas de uma cadeira, escurece (como um fade-out) e retorna o movimento, a sequência, mas agora com o marido mais novo, sentado na mesma poltrona a ler o jornal – primoroso! Circularidade alicerçada na repetição do quotidiano (Chantal Akerman e Hong Sang-soo, como não pensar neles) é também provocada pela câmara – como os olhos que veem o mesmo lugar em diferentes tempos -, que repete o plano inaugural do filme por mais três vezes, em diferentes tempos, traçando a mesma sequência e tendo a natureza como testemunha até fixar a escadaria que dá acesso à porta da casa.

E quando o fim da linha se aproxima, tudo parece cansar, o livro que Alzira fecha, por mais que possa entreter; a janela que Alzira fecha, mesmo que dela venha ecos e cores da vida. O tempo é de fechar os olhos.

‘Sob a Chama da Candeia’ (2024), de André Gil Mata
Visionado na Sala do Cinema Ideal