Nos séculos XVI e XVII irromperam pela Europa os Gabinetes de Curiosidades que, albergando diversos objectos de proveniência ampla, foram os precursores dos museus modernos.
Entre os Gabinetes de Curiosidades – compostos por inúmeros exemplares associados à cultura material, mas também provenientes da natureza de primeiro grau, ou outros relacionados com o exotismo que a Europa projectava nas sociedades distantes de si, portanto, entre esses gabinetes e os museus que os secundariam, ocorre uma diferença assinalável: aqueles resultavam de escolhas o mais das vezes aleatórias e apresentavam-se enquanto amálgama, tanto visual, como energética; os outros procuraram estabelecer um discurso concordante com um alinhamento de obras e de objectos, tanto temporal, como didáctico. Sabe-se que este alinhamento temporal e didáctico visou criar uma imagem forte que modulasse o ar que nos banha, ou seja, uma imagem que se imprimisse na memória colectiva partilhada e criasse hábitos. Se seguirmos Hans Belting, todavia, concluiremos que a prazo essa imagem forte viria a criar uma heterocronia – um descompasso com consequências na vida de todos os dias e proveniente da transferência da experiência comum, passível de ser integrada apenas pelo indivíduo, para sequências museológicas.
Esse didactismo inicial dos museus, que correspondeu então à imposição da linearidade do tempo e transformou o Mundo num pódio de povos, de nações, de obras de arte, sabe-se que tem vindo a ser questionado, a ser problematizado, a ser revisto, a ser temperado e a ser compensado por estratégias que possam resignificar a referida experiência comum, contribuindo para a criação de um outro sentido, nomeadamente, o que proporcione sentimentos de pertença. No entanto, hoje é indubitável que permanecemos num estádio nunca observado na história humana a que a marca digital, responsável pela circulação de informações, de notícias, de imagens, de opiniões, de reflexões, vai conferir um selo indesmentível: a pertença definitiva do ser humano, pela primeira vez em todo e qualquer tempo, ao planeta Terra. Cabe-nos permanecer conscientes desta nova realidade e, sobretudo individualmente porque em conexão com a nossa memória integrativa, para a qual Hans Belting chama a atenção, ir desencadeando fenómenos de cuidado, de cura, de preservação.
Porque os Gabinetes de Curiosidades contemporâneos existem e mudaram de natureza, e como a Antropologia paulatinamente chegou à conclusão de que o seu objecto de estudo, além de dever incidir nos ditos povos exóticos e nas comunidades distantes, exigia uma submersão no próprio sujeito que criava o conhecimento, convém perceber que as estratégias de resistência serão agora diferentes, mas sempre dirigidas contra a imposição do todo ficcional; para o que aliás Marc Augé sabiamente alerta.


