“Noite sem horas”: assim escreveu Emmanuel Levinas quando quis descrever a brutalidade da II Guerra Mundial.
A presença humana na Terra reporta-se a um lapso de tempo muito reduzido, se considerada a existência do planeta; em todo o caso, exceptuando a própria plasticidade que é devida a tudo quanto é natural, dever-se-á certamente ao Homem o estabelecimento das condições aceleradas de degradação da vida, vigentes. Esta degradação, pelas qualidades do impacto da acção do Homem, atinge, já de forma irreversível em alguns casos, diversos planos: vida humana, ecossistemas, consistência do ar, conservação dos mares, eixos da Terra. Qualquer descrição dos jogos de forças geopolíticas actuais, seja o ocaso do Ocidente, seja o rugido do Oriente, com o Norte a perder o rumo e o Sul a perspectivar-se como eterno campo de delapidação, deverá, qualquer descrição, repito, espelhar na sua nevralgia analítica a rarefacção das forças da vida.
Contrariamente a quem defende que o ser humano deve retirar-se gradativamente do horizonte para devolver à Natureza a sua soberania, já que o antropocentrismo que reivindicou degenerou no caos, na degradação, na usura; digo que o ser humano, sem que eu adopte a nomenclatura do antropoceno, não pode abdicar da Terra. E digo-o por dois motivos: primeiro, porque o ser humano é também natureza; segundo, porque apenas ele pode interferir especificamente em certos planos da nossa existência global, seja pela detenção de certos conhecimentos, seja pela sua capacidade de organização.
Nesta “noite sem horas” que se atravessa, e que rasga internamente quem mantenha a lucidez, vê-se profusamente marcação de território, tanto por parte de figuras do poder, como pela de grupos de interesses usurpadores: o objectivo passa por adestrar os indivíduos a permanecerem em cubículos que impossibilitem a experiência. Tais cubículos vão desde o écran até às auto-estradas, passando ainda pelos pacotes turísticos: todos, sem excepção, entorpecem o humano, embora em permanência contribuam para modular o ser.
Uma ampla zona desta modulação do ser que está em curso visa fazer perdurar o sono da razão, esse mesmo que Goya identificou e corporizou imageticamente, mostrando-nos os monstros dele advindos. Perante tal noite, e pertencendo-lhe também o legítimo descanso de que o ser humano necessita para equilibrar a luz do dia, cabe-nos, quando fechamos os olhos para dormir e acedemos ao encantamento fundamental da vida, apelar ao sonho que transmuta. E é nosso dever inscrever esse sonho que transmuta no horizonte dos dias em que se labora, para que possamos construir uma nova Terra, Entre Mundos, que assente num realismo utópico.