Atrás da lente, o olhar de quem, em tempos passados, esteve à frente dela. A segurar a máquina, uma mão que quase traçou quarteirões de cidades. A focar os rostos, uma visão sarada de momentos cinzentos. A disparar o botão, a mão segura de quem sabe o que faz.
Anka Zhuravleva, russa, cresceu rodeada de livros de arte; de arte e de utensílios para a criação de arte. Se a infância fosse uma palavra, nela, seria arte. Cresceu e cresceu sem parar. Tornou-se figura esguia, elegante e leve; talvez de forma natural, em jeito de cariátide para o curso de arquitetura em que ingressa em 1997, no Moscow Architectural Institute, seguindo as pegadas da mãe, agarrando as memórias de infância. Quis no entanto, o destino, que o caminho não fosse tão racional, alinhado e métrico como as doutrinas dos lentes da arquitetura russa. O orgânico, as linhas sinuosas que outrora delinearam e criaram cidades ocidentais entraram no seu caminho, sem pedir licença, nascidas das perdas insubstituíveis da mãe e do pai, em 1997 e 1999. Quis o cinzento dos finais de ‘90 que ela fosse além da dedicação exclusiva aos traçados geometrizados da arquitetura: foi mão que tatuou – fez do tatuar forma de expressão; foi voz que cantou – fez da música rock um grito; foi corpo que pousou – fez de ser modelo um apaziguar. Foi não, é.
Anka Zhuravleva é de tudo isto feita. Porém, sente-se que é hoje, no reflexo que conhecemos como arte atrás da lente, mais a modelo que confiante do seu corpo fez dele arte para a Playboy, despida de preconceitos, de medos. Afinal, o que é a arte se não um amor incondicional ao corpo humano? O que é a arquitetura se não o albergue que procuramos fazer à medida do nosso corpo? Sete cabeças e meia, com envergadura igual à altura, o nosso retângulo de ouro. Todavia, no meio de tanto empirismo faltava, neste caminho bem palmeado, a experiência que tudo estabiliza: a paixão. Tudo se completa e complementa em Anka com a paixão vinda de um só músico e compositor. A tatuadora, a cantora, a modelo e a arquiteta só existem, como mão que segura a máquina, pela música de nome Alexander Zhuravlev. Porque só se é completo quando há a inspiração das tais ninfas da Ilha dos Amores. De Moscovo vai para São Petersburgo, de um encontro para uma vida, do um para dois, porque ainda há amores ao primeiro flash; e segue-se a tranquilidade que a leva ao regresso à arte, aos utensílios para criar arte, porque quando a infância nos é tranquila, nela está a segurança de um ser. Tatuadora, cantora, modelo, arquiteta, artista plástica… O conjunto quase se fecha. Desenho e sede de pintar, de criar, bem devagar, com calma, porque o desenhar e o pintar serão, quiçá, dos atos mais sós, mas mais cheios, que se pode experienciar; e devagar, com calma, porque as memórias gris afloram sem pedir. Pinturas e desenhos que fazem coleções, esboços não terminados, pinturas a óleo e o recuperar da consciência com uma curiosa certeza: a repetida busca na fotografia pelo seu tema, pela sua inspiração que… Tatuadora, cantora, modelo, arquiteta, artista plástica, fotógrafa.
Fecha-se, por enquanto, o círculo. Anka das mil e uma lentes de contos contados. Anka que segura e desafia a máquina. Anka que foca rostos e corpos, cenários de arte projetada. Anka que dispara o botão e capta o momento. Anka que é fotógrafa de contrastes. É esta a Anka que, num certo dia, num solto navegar, nos roubou o fôlego, nos tirou os pés do chão, nos deixou de queixo no chão. Anka que é forma de fotografia. •
© Fotografia da Anka Zhuravleva: Misha Burlatsky.