Natureza Morta, de Susana de Sousa Dias

No dia 1 de Novembro, pelas 17h, pôde ver-se, no CAPC-Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, o filme Natureza Morta-Visages d’une Dictature, realizado por Susana de Sousa Dias. Ao que se seguiu um debate moderado por Maria Teresa Cruz.

O filme é de 2005, e estende-se por 72 minutos. Já a ocasião do dia 1 de Novembro de 2016 relaciona-se com o projecto estórias: portugal – áfrica, coordenado por Maria Teresa Cruz e uma iniciativa do Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens da FCSH-UNL, que conta com o apoio da DGArtes e da Fundação Calouste Gulbenkian. Visa, no seu cerne, o adensamento de uma plataforma digital em que possam ser partilhadas experiências pessoais relativas a tal geografia; essas experiências podem assumir a narrativa, a imagem, o som, numa espécie de atlas-mosaico de inspiração em Aby Warburg. Por tal, ao visionamento do filme seguiu-se um expressivo debate moderado pela coordenadora do projecto, que incluiu: além da realizadora, António de Sousa Dias (responsável pela música de Natureza Morta), Ansgar Schäfer (o produtor) e Fabrice Shurmans (investigador no CES-Centro se Estudos Sociais, concretamente em ERCMemoirs). Maria Teresa Cruz não deixaria de sublinhar a admiração que reserva a esta obra fílmica, inequívoco recorte de tempos sombrios, como os nomeou Hannah Arendt.

Na génese do filme esteve uma pesquisa no arquivo da PIDE/DGS, em torno de fotografias dos presos políticos portugueses afectos à ditadura salazarista; no entanto, também se incorporaram imagens recolhidas no arquivo do Exército, que provou ser de uma ampla “fecundidade”. Susana de Sousa Dias focou-se em actualidades, em reportagens de guerra, em filmes documentais de propaganda ou em rushes nunca utilizados nas montagens finais. Apesar de ter capturado inúmeras horas, apenas 12 minutos de imagens, para além das que se filmaram na ocasião, ou seja, as das fotografias dos presos políticos, seriam realmente incorporados na obra final.

Como a própria se questionou: “[…] como mostrar o outro lado de um regime autoritário através de imagens maioritariamente produzidas por esse mesmo regime?”; ciente ainda de que, e citando, como o faz, Arlette Farge: “o arquivo pode dizer tudo e o seu contrário.” E o que disse o arquivo em Natureza Morta? Disse muito, quase tudo; numa espécie de insónia que se desenrola a arder, em clima de noite escura e espectral. Notem-se os princípios fundadores de tal obra, e vincados por Susana de Sousa Dias: ausência de palavras e anacronismo, com opção pela “exposição”. Trabalhando as imagens por dentro, numa postura que remeteu, a realizadora, para o conceito de “sintoma” aduzido por Didi-Huberman, e apercebendo-se da “doença” inerente a algumas delas; apresenta-nos uma perspectiva que deriva de um compromisso ético.

Face à ausência de palavras, para que a imagem não fosse subordinada a uma ordem, tem-se na música, no som, o elemento que cria os devidos espaços, e introduz um fio audível. Incrivelmente, tal som parece-me adensar o clima nocturno e espectral, levando-me a pensar no il y a – há de que Emmanuel Levinas tão expressivamente dá conta. Assim, e como conta o filósofo nascido na Lituânia, no quarto escuro em que dorme a criança durante a noite murmuram os sons mais ou menos distantes da restante vida que se desenrola; extrapolando, a música não pára, murmura continuadamente, assombra. E assusta: ou porque é um ranger de portas, ou porque é o batimento de um relógio, ou um silvo longínquo. Aliás, quando o ecrã fica negro, ou branco bem mais raramente, dir-se-ia que tal corresponde ao momento em que esfregamos os olhos, seja porque duvidamos do que estamos a ver, seja porque desejaríamos acordar daquele sonho.

Será a História isso: um Sonho? Eu própria escrevo neste momento sobre aquilo que a minha memória retém, e reelabora, em face de diversas possibilidades. No entanto, se escrevo sobre Natureza Morta é porque nela acredito, porque acrescenta, e muito, à experiência do real, e da História. Sobretudo quando o faz recorrendo a espécies de passadores, ou filtros, que constroem uma visão, e que a sustentam, que a defendem. Nada mais desnecessário do que um ruído de imagens: tempo – é o que nos dá Susana de Sousa Dias; tempo de exposição, tempo de percepção, tempo de percolação. Não será por acaso, parece-me, que se ouça, na música do filme, um compasso de relógio associado essencialmente ao militarismo; lembro-me de Walter Benjamin, ao referir que durante a Revolução Francesa diversas pessoas dispararam sobre os relógios, como forma de eternizar a excepcionalidade. Mário Cesariny, em voir deux foix, também nos transmite sobre esta questão uma impressão reveladora.

Ao longo do filme, organizado portanto em espaços que poderiam equivaler-se aos quartos em que “dorme” a criança, confronta-nos o ecrã negro, muito ocasionalmente branco; neste último caso, como não pensar na “página em branco” proposta por Susan Gubar, que aqui se relacionaria com uma escrita que deverá ser feita, que é exigida, uma fala dirigida e emanada de todas as pessoas que ficaram proscritas? Susana de Sousa Dias, embora apresente corpos mortos e mutilados, não torna a guerra apetecível; aliás, é pungente a forma como, em diversos cenários, se “desnaturaliza” a realidade através do recurso a meios mais específicos da pintura; refiro-me à decalcomania e às figuras de sopro, por exemplo.

Já perto do final, e no momento em que o filme se detém na ocasião do 25 de Abril de 1974, uma fala: “Vila Morena” – ouve-se, de forma cristalina. Depois, já mais telegraficamente, “forças armadas”. Dir-se-ia que “Vila Morena” foi um tiro disparado sobre o relógio. O que é uma Revolução? A noite permaneceu. Sem dúvida que nos cabe inventar as palavras, por Emmanuel Levinas confundidas com a bondade, que possam significar o resgate do il y a – há. Sempre.

Ficha Técnica
Realização: Susana de Sousa Dias
Música: António de Sousa Dias
Montagem: Susana de Sousa Dias, Valérie Bregaint, Helena Alves
Produção: Ansgar Schäfer (KINTOP) e Xavier Carniaux (AMIP)
Duração: 72’
Apoios: Centre National de la Cinématographie Procirep, Arte France, Fundação Calouste Gulbenkian
Distribuição: ATALANTA FILMES

@ Fotografia: Cortesia de Susana de Sousa Dias

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