De 7 de Dezembro de 2016 a 3 de Janeiro de 2017, a Galeria Bessa Pereira e a Fundação Portuguesa das Comunicações apresentam uma exposição de pintura de Paulo Quintas. 16 óleos: ora sobre papel, ora sobre tela.
“Em Desert Island Paint, Paulo Quintas transporta para um oceano branco a sua contínua experimentação conduzida pela materialidade das tintas e das técnicas. Seguindo caminhos do acaso, ditados muitas vezes pela repetição de processos e formas, chega à criação de uma pintura que é uma descontinuidade com a realidade. O vazio, negativo da representação, e a planeidade, a afirmação do não material, são uma gramática que se vai actualizando numa constante reactivação de experiências.” Palavras proferidas por Liz Vahia, e que podem ler-se no texto da folha de sala que acompanha a exposição, patente portanto na Fundação Portuguesa das Comunicações.
Efectivamente, poder-se-á nesta ocasião apontar uma “transmutação da matéria”. No entanto, já diz José Gil, em Poderes da Pintura, que se não tem dado devida atenção a uma característica basilar da pintura, e que reside na tendência do que é pintado para sair do quadro. Daqui resulta o equívoco da bidimensionalidade pictórica, que toma como princípio a planeidade; que fique bem claro – não existe bidimensionalidade na pintura! Decomposto o quadro, num exercício crítico exigente a que Walter Benjamin dá o nome de mortificação, digamos que os seus elementos parcelares dançam para cá e para lá, e afectam-nos fisicamente.
Perante tal pressuposto, em Desert Island Paint encontramos os seguintes elementos parcelares: esfera/disco/vórtice, traço/linha, U, a alternância dos números 6 e 2, as cores, preta, azul, lilás escuro/roxa. Num exercício de subtracção que caracteriza o método de Paulo Quintas, e tendo-nos confessado a necessidade de chegar a uma espécie de grau zero no atelier quando se trata de afinar a prossecução de uma nova série no seu trabalho; digamos que aqui permanecemos num espaço gravitacional simbólico primordial. E para onde nos transporta?
É-me muito clara a configuração de um drama nesta exposição: feminino e masculino, natureza e individuação, explosividade e cárcere, prova, tensão dialéctica, morte, profundidade, espiritualidade; e que se desenrola em ordem a características essenciais, que sintetizo na sujidade, na multiplicidade e no contágio. Em face da enunciação de tais elementos, a viagem pode começar: e vale a pena.
Parece-me gravosa a ideia, aliás bastante corrente na actualidade, de que existem tantas versões de mundo, e consequentes interpretações, quantos os sujeitos cognoscentes, e de que todas se equivalem. Sem dúvida que a lição de Emmanuel Levinas, ao vincar que acedemos ao mundo através de uma morada, e nesta se perfile uma situação precisa, me está sempre presente; mas…como o mesmo filósofo avisa: não podem dispensar-se os pontos cardeais. Chamemos-lhes símbolos, arquétipos, pontos cardeais, chamemos-lhes corpo. Ora, o feminino é esfera/disco/vórtice; o masculino é traço/linha. E por tal não entendo que se trate de convenções, mas sim de corpo. Já Edvard Munch, em O Grito, nos transmite os efeitos tremendos de um corpo líquido, à maneira da sensibilidade de um Zygmunt Bauman para diagnosticar traços do contemporâneo.
Paulo Quintas, nesta medida, apresenta claramente os pontos cardeais, e, com eles, o corpo: elementar e vertiginoso; elementar e imperativo. Diga-se que o pintor tanto apresenta a dialéctica, presente na tensão do número 2, entre duas visualidades, feminina e masculina; como a faz contida no feminino per si, numa alusão à potência de criação que se associa às mulheres. Já no que respeita ao número 6, o da prova, vamos encontrá-lo em perspectiva, como se se afirmasse enquanto desafio; no reino dos pontos cardeais, e do corpo que temos, existem o bem e o mal.
O que proponho, então, é que se desloque à Fundação Portuguesa das Comunicações, na Rua Industrial, 16, em Lisboa, e aceite o desafio inteligente de Paulo Quintas. Até 3 de Janeiro de 2017.