Três palavras definem a história sobre o conflito gerado entre um Japão feudal e o catolicismo do século XVII através da crueza das imagens numa intensa rima com a ausência de música que acompanha todo o novo filme de Martin Scorsese.
Apostatar:
{verbo transitivo} Renegar (a sua religião); abjurar.
{verbo intransitivo} Abjurar o seu credo.
Eis o objectivo do regime Xogunato Tokugawa, o poder político japonês de então, para com os Padres Jesuítas e para com quem, do povo, se teria convertido ao cristianismo, porque não compreendiam a fé. E o princípio do fim de uma história retratada pelo padre (Cristóvão) Ferreira (Liam Nesson), que teria apostatado, acto consumado ao pisar a figura de Jesus Cristo. Foi este o motivo que levou os membros da Companhia de Jesus, Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garrpe (Adam Driver), a viajarem, primeiro, para Macau – onde conheceram um homem que terá um papel importante ao longo da trama – e, depois, para o País do Sol Nascente, com o intuito de encontrar o mentor de ambos, o padre Ferreira.
A partir de então, desenrola-se toda a trama: O testemunho da perseguição nas aldeias, a crença infinita na fé cristã, o silêncio que reinava durante a noite, enquanto rezavam, a ocultação constante dos jovens padres, para que o catolicismo perdurasse, e a morte dolorosa de convertidos que se recusavam a apostatar, sofrimento perante o qual ambos os jesuítas se interrogavam sobre o silêncio de Deus, gerando a crescente dúvida a respeito da própria religião – acto que persiste nos nossos dias, sendo a fé questionada vezes sem conta, por uns, desacreditada e mal-amada, por outros. E porquê?
O livro e o debate
A história é inspirada no romance de “Silêncio” (Chinmoku , em japonês), de 1966, do escritor nipónico Shusako Endo – também ele cristão –, e as duas obras – literária e cinematográfica – foram alvo de um debate intitulado “Portugal e o Japão: história de um sucesso mal sucedido”, no dia 11 de Janeiro, na Fundação Oriente (veja todo o programa aqui), com a jornalista e escritora Clara Ferreira Alves, o Padre José Frazão, provincial dos Jesuítas, e o historiador João Paulo Oliveira e Costa, tendo o jornalista Joaquim Franco como moderador.
A primeira palavra foi dada a João Paulo Oliveira e Costa que, não tendo visto e filme e estando a escrever um livro em que também retrata este episódio da história entre Portugal e o Japão, descreveu a sociedade de então e forma como o Cristianismo foi aceite e implementado, assim como a reconversão desta realidade, passando de uma tolerância para a perseguição, que impunha a apostasia num “Japão isolado, como lugar da civilização do Velho Mundo”.
Por sua vez, Clara Ferreira Alves, que tinha lido apenas o livro de Shusako Endo, sobre o qual destaca o “retrato de um país feudal, fechado, a viver no dogma da inteligência e da nacionalidade” e cruza a história com o presente, quando a conversa remete para a crença absoluta na existência de Deus: “No mundo ocidental é muito difícil compreender a fé”.
Por outro lado, a jornalista sublinhou a “desatenção dos portugueses – e dos autores portugueses – pela nossa História”, pois ainda há muito para explorar sobre a missão dos Padres Jesuítas no Oriente
“Como é que um padre, durante o filme, se posiciona?” A pergunta que muitos gostariam de ouvir, foi feita por Joaquim Franco ao Padre José Frazão, para quem “o filme tem o poder de nos deixar mastigar o que vimos. Como cristão, como Jesuíta, há um drama que passa para o leitor/ espectador: Até onde é que iria a sua fé?” Além disso, o representante da Companhia de Jesus referiu o “lado não êxito” desta missão evangelizadora, “porque a fé precisa de conjugar este lado” e enaltece a forma como o realizador e o autor “nos leva a entrar neste drama”.
Com efeito, o filme de Martin Scorsese, que estreou, ontem, nas salas de cinema do país, remete para uma profunda introspecção e – acredite – ao silêncio, porque ninguém fica indiferente a esta obra-prima do realizador norte-americano que, de uma forma implícita, desafia os valores da Humanidade.
Portanto, deixamos uma pergunta: Será que, ao presenciar tamanha crueldade, alguém cedeu à apostasia?
“Os arrogantes cedem!” •
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