“Todos os Títulos Estão Errados” (?), de Paulo Quintas

Até ao dia 30 de Abril, na Galeria do Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, em Lisboa, permita-se questionar a pintura de Paulo Quintas e, já agora, deixar-se derradeiramente colocar em questão através dela.

“Todos os Títulos Estão Errados”, trata-se de uma exposição antológica com curadoria de Isabel Carlos e que reúne obras desde 1983/1984/1987, anos progressivamente inaugurais da pintura do pintor quem, como se afirma no catálogo pela curadora, “tem vindo a construir uma obra assente na rarefacção da imagem.” Nascido em 1966, e em algumas ocasiões afirmando-se tratar-se de um “artista dos anos 90”, Paulo Quintas pinta/constrói as suas séries hoje como ontem, e recorda-me aqui Cesariny, concretamente na ocasião em que lhe perguntaram, já quase no final da vida: e as suas obras surrealistas? Vejam, estão aqui, continuo a pintar, respondeu. Não, as suas obras do período surrealista? Insistiam.

Mas “Todos os Títulos Estão Errados” é o ponto de fuga radical da exposição. A intitulação de uma obra (de arte) é um fenómeno relativamente recente, tal como nos transmite Maria Teresa Cruz. Pese embora, um título comporta uma musicalidade, contribuindo para a modulação da matéria, como se fosse uma vibração específica. Esta proposta/ponto de fuga muda a frequência, ao transmitir-nos o erro de todos os títulos. Portanto, o que aconselho é que leve as portas da percepção bem porosas e faça como indica José Gil, a quem já me referi na transmissão dos Poderes da Pintura: existe um movimento interno que a faz, à pintura, sair de si e vir passear connosco. Relembre-se, por exemplo, e para dar conta do que vos pretendo transmitir, a Cabeça de Homem, gigante, de Paul Klee: não se trata de carregar o cérebro, mas sim de deixar a pintura descarregar no corpo.

Já escrevi sobre a pintura de Paulo Quintas, concretamente, na ocasião da exposição que intitulou Desert Island Paint, decorrida no ano de 2016; nesse momento, extasiou-me a rarefacção metafísica, à qual correspondia uma, diria, humidade pictórica evidente. Ou seja, a sua pintura opera com unidades simbólicas primordiais e é, simultaneamente, intensamente “física”. Sem desejar repetir o que foi afirmado nessa ocasião e sem poder, por outro lado, aqui conter, detendo-me, na vastidão de “Todos os Títulos Estão Errados”, prefiro agora eleger uma obra-problema. Trata-se de duas mesas que se encontram numa das salas do piso superior; não as identifico, “todos os títulos estão errados”.

Aspergem de tal obra-problema quatro perplexidades fundamentais, parece-me, na exacta medida em que Paulo Quintas situa a pintura à “mesa.” Assim: discussão; dissecação; alimento; horizontalidade/verticalidade. Traz-se à discussão a pintura, sem dúvida, nomeadamente em tudo o que se relaciona com a proclamada morte que a terá acometido; se Hegel anunciou a “morte da arte”, e sendo a pintura o seu nervo mais actuante, então, será evidente a sua condição de pária no panorama contemporâneo, pese embora a vivificação operada nos anos 80 do século XX. Claro que Paulo Quintas deixa em aberto a discussão, instigando a colocar as “cartas em cima da mesa”, em parte porque, e perante a condição de pária da pintura, ele “é”, sem sombra de dúvida, um pintor.

De tal bifurcação inicial nasce a segunda perplexidade, ou seja, a dissecação. Situamo-la na tensão entre figuração e abstracção: dois regimes excludentes? Será a abstracção a autópsia da figuração? Será o “processo” um cadáver-esquisito da Obra? “Todos os Títulos Estão Errados”, na verdade, e ao estabelecer uma linha de horizonte com cerca de 30 anos, permite-nos ter a perspectiva de uma paisagem pictórica muito rica: é como se Paulo Quintas deitasse a pintura na mesa da morgue para, enfim, revolvendo as entranhas e os órgãos, revelar as causas da sua morte.

No entanto, esta pintura é também alimento, pois é em torno de uma mesa que encetamos as nossas refeições; tal ritual alude ao processo civilizacional, tal como dele dá conta Norbert Elias. Pelo que, não se demitindo, consciente ou inconscientemente, das questões conceptuais que ensombram a pintura, Paulo Quintas, “sendo” pintor, sabe que se inscreve numa linhagem e sabe ainda, parece-me, da necessidade: nela, necessidade, entronca a satisfação.

Horizontalidade/Verticalidade. Walter Benjamin distingue a horizontalidade do desenho da verticalidade da pintura, situando esta última na alçada da “mancha”. Todavia, a horizontalidade, que está também presente nesta exposição, vem com o intuito específico de dissuadir o pintor da caixa-profundidade que foi esqueleto óbvio da pintura desde o Renascimento. No entanto, ao emparceirarem, porque formam realmente um par na exposição, deixam a derradeira questão: não pretendo desvendá-la; antes proponho que funcione aqui enquanto horizonte da sua, potencial, percepção.

Aceita, ou não, o desafio que lhe proponho?

Para ver, lá, até ao dia 30 de Abril, na Galeria do Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, localizada na Av. Da Índia e com o seguinte horário: Terça a Sexta 10h-13h e 14h-18h, Sábado e Domingo 14h-18h.

Aqui, a palavra.

+ Cordoaria Nacional 
© Fotografia: www.cm-lisboa.pt

Já recebe a Mutante por e-mail? Subscreva aqui .