“Desenho sem fim” será um (re)começo? / CIAJG

Começou no dia 8 de Dezembro de 2018, termina no dia 10 de Fevereiro de 2019: a grande exposição de desenhos de Rui Chafes. É a primeira ocasião em que se mostra, distendida por 30 anos, e de forma sistemática, uma “produção” recatada. Para ver no CIAJG, em Guimarães.

Georges Didi-Huberman, no contexto de uma reflexão que dedica à arte contemporânea, diz-nos que o que nós vemos também nos olha. Pela parte de Mikel Dufrenne, somos avisadas de que o/a espectador/a deve despossuir-se através da obra de arte, ou seja, a obra propicia uma suspensão relativa do dado. Neste entorno, a crítica não escreve despudoradamente sobre os seus sentimentos, que verteria sem dó nem piedade. Bem alerta Maria Filomena Molder: é preciso descobrir a obra na obra, para que não se alimente a comédia subjectivista pela qual nos vemos amiúde sitiadas. Assim sendo, quando entrei no Centro Internacional das Artes José de Guimarães para ver “Desenho sem fim”, de Rui Chafes, deixei-me esburacar pelos desenhos, para que passasse qualquer coisa que já não sou “eu”, não é “o” artista, mas que a obra sem dúvida faz aparecer. Outra pessoa poderia escrever, ou ver, coisas diferentes das minhas? Claro. Mas, nesse caso, debatamos e apontemos (n)a obra.

Quando acedi ao espaço onde a exposição permanece, foi-me muito clara a formulação de uma casa, com salas de diversas cores, bem como um hall de entrada; curiosamente, na conversa que juntou Rui Chafes e os curadores, Delfim Sardo e Nuno Faria, seria explicado que a mesma se concebeu enquanto casa e que o artista havia escolhido as cores dos quartos, numa alusão à arquitectura romântica. Após a intuição inicial, o “corpo” central, em que permanecem mesas de madeira com tampos inclinados, apresentar-se-ia com o aspecto de um claustro, pelo que “Desenho sem fim” parece-me ter subjacentes dois universos simbólicos: a casa-intimidade-sujeito e o claustro-recolhimento-estudo. Depois da ordenação espacial, o meu intuito foi “entrar” nas diversas salas, deixando o claustro para o fim. Confesso que não contei os desenhos.

Sala azul. Azul é a cor do infinito e, por isso, é a cor que atravessa o(s) tempo(s) e nos trespassa, sem misericórdia. A história do pensamento é também a da projecção e da morte. Walter Benjamin transmite-nos que todo o documento de cultura o é de barbárie, pelo que o escultor parece aqui colocar-se em semelhante perspectiva: para todos os homens que pensaram existe uma mulher cujo sangue se ofereceu enquanto sacrifício. Permitir-se-á, em termos civilizacionais, a permanência de semelhante mutilação? Ou salvar-se-á, ainda em vida, quem vive, resgatando assim a história e abrindo caminho para a alegria?

Sala verde-vivo. É a da mulher, e também da esperança. É-nos transmitida uma deriva interior que associo à transparência, sendo que o traço aparece como uma espécie de fio de pérolas, operando no “último coração do sonho”, como o enunciou tão bem Al Berto. Assim, e relembrando essa figura que o poeta viu envelhecer, Rui Chafes faz também desfi(l)ar as representações de mulheres que olha: a qual oferecer a pérola que nasce no coração num estado de solidão absoluto? Parece ser esta a questão que honestamente nos/se coloca.

Sala rosa. É a da carne. Por isso tem a mancha, na cor, os desdobramentos, as explosões. Verificam-se inteligentes correspondências entre vegetal, mineral e animal, bem como entre a realidade e a sua expressão, com a coexistência de fotografia e desenho, pelo que podemos estar aqui em presença da própria textura do mundo. Alternam-se o matadouro e a flor.

Sala verde-água. É a da paz, do cuidado, da cura. Refira-se que nesta sala se afixam os desenhos elaborados para acompanhar a sua tradução de Novalis, o poeta que tanto admira, tendo já reiterado numa ou outra ocasião a lembrança feliz de tal momento da sua vida. Portanto, aqui se deixa muito exemplarmente plasmada a liquidificação dos dias e das noites de atenção e transfiguração: vapores, raízes, sementes, teias de aranha.

Sala … (cor sobre a qual não me consigo decidir). É aquela em que se leva o desenho ao médico; ressalto “Penugem”.

Hall de entrada, na mesma cor (…). Sendo os desenhos, aqui, correspondentes ao início do seu percurso, portanto, os mais recuados no tempo, parecem-me essencialmente exercícios concernentes com a seguinte indagação: como desenhar uma escultura? Em termos de formas, creio sobressaírem nitidamente duas realidades: a esfera, ou pelo menos entidades redondas e circulares; por outro lado, objectos-contentores.

Por fim, o claustro, onde parece forjar-se uma gramática precisa: “menino” (escrito pelo menos duas vezes); águia; “senhorialismo feudal e democracia burguesa” (frase repetida); morte (a mulher grávida contém duas mortes, não é o que nos transmite?); vida (para lá do sorriso de uma criança encontra-se o mundo); espaço sideral; carne de talho; flores; casa; órgãos; geometria; cruz. Da gramática cujo estudo se aprofunda neste claustro, extrapolam-se as construções presentes na casa.

Não perca: até 10 de Fevereiro no Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG), em Guimarães, com o seguinte horário de funcionamento: terça a domingo, 10h00-13h00 / 14h00-19h00 (últimas entradas às 12h30 e às 18h30). •

CIAJG

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