“A metade do céu” / FASVS

Até 23 de Junho, um projecto expositivo com a assinatura de Pedro Cabrita Reis: “A metade do céu” decorre no Museu da Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva, integrando 61 artistas sob a atenta presença do casal. Não falte.

No átrio da Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva, antes mesmo de começar a exposição A metade do céu e confrontando Lilaea de Joana Vasconcelos, a obra que “vigia” a nossa entrada, dispõem-se dois panfletos, não assinados, e onde pode ler-se: num, “Só para rapazes”, e no outro, “Eu e a Josefa estamos magoadas”. Ou seja, apesar de A metade do céu ser uma exposição integralmente no feminino, uma vez que se constitui por obras de artistas, a verdade é que se deixa a nota relativa a uma visão dirigida a “rapazes”. Será? Será, na verdade, necessário aludir à recepção para percebermos melhor os panfletos: esta exposição tem induzido polémica. Uma obra é uma obra, uma exposição é um projecto finito no seu conjunto; e se a obra é o aferidor das interpretações, bem como o projecto finito delimita um corpo visível, e notável, convém também não esquecer a forma como determinadas “interpretações” enredam as obras e os projectos. Por exemplo: Michel Foucault sobre As Meninas de Velásquez; Maurice Merleau-Ponty sobre o universo de Cézanne, particularmente a Montanha de Santa Vitória; Gilles Deleuze sobre a pintura de Francis Bacon; etc.

Estes pensadores instauraram visões fulcrais e, de certa forma, encaminharam o olhar posterior, ao inaugurarem campos de inscrição exemplares. Nesta medida, a reacção a A metade do céu não deverá escamotear-se, precisamente porque cria um campo virtual de entendimento desta exposição: tenho-o em conta e pretendo aduzir o meu ponto de vista, não desafectado, e que, sei bem, irá inscrever-se nessa virtualidade. Todavia, não será este o lugar para esgrimir argumentação dialéctica com os textos que até agora se detiveram em A metade do céu; conto, pela luz do dia que o meu texto verá, trazer outra possibilidade de visão. Concebo, sempre, que a crítica, como a sustento e alimento e adenso, tem como objectivo prolongar a singularidade de uma obra ou de um projecto, ou seja, a crítica não fecha a interpretação, mas deverá ser condutor exemplar de uma energia particular. A crítica não é didáctica: é “simpática”; também não é empática: mas provém da atenção demorada a uma coisa. No exercer de tal atenção parece-me essencial descerrar interiormente pre-conceitos, ou seja, permitir-se um espaço a priori de fruição, de potencial inscrição. Dito de outra forma, não sem o seu quê de enigma: deixar o ar propagar-se, obstando à petrificação. Ora, obstar à petrificação é, será sempre, inviabilizar a estabilização do olhar numa antecipação do visto, o que não significa correlativa cegueira, mas sim indisponibilidade; pois bem, entrei em A metade do céu totalmente disponível.

Após Lilaea, de Joana Vasconcelos, repito, aguarda-nos RÉPÉTITION, de Cristina Mateus, Fragmentos Arqueológicos de um Corpo Virgem I, de Clara Méneres e Sara sem André, de Sara (& André): uma triangulação bastante sugestiva que se alinha enquanto subimos as escadas de acesso à sala onde habitualmente permanece a colecção do Museu. Entretanto, a triangulação aludida é velada por três telas de Vieira da Silva, e automaticamente se perfila um sentido profundo nesta exposição, aliás cristalinamente declarado na folha de sala: “Importa trazer ao encontro de Vieira da Silva uma perspectiva singular – pessoal, afectiva, decerto apaixonada – sobre essa outra metade.” Reivindica-se uma “perspectiva singular” por quem pretende, como também fica claro, instaurar “um território de confronto.” Quem pretende? Pedro Cabrita Reis, quem assinou, portanto, o projecto expositivo e procedeu à escolha, numa atitude “pessoal, afectiva, decerto apaixonada”, das artistas e das obras. Uma atitude deste âmbito, assim afirmada, urge remetê-la para a questão, actualmente por demais necessária, de defender a capacidade do indivíduo interferir no curso da História do mundo: Tarkovski di-lo, e John Berger também. É assustador pensar que uma vida pessoal se dilui em representações e imagens, sem criar a intimidade e reclamar a subjectividade que lhe está prometida. Roland Barthes, em A Câmara Clara, decerto aponta também um ângulo bastante apaixonado sobre esta questão.

O trajecto da história das mulheres, de que o feminismo dito histórico é uma parcela/fenda no contemporâneo aberta pela Revolução Francesa e que o século XIX se encarregaria de inflamar, ensina-nos precisamente a descontinuidade. Porquê? Porque, como Joan B. Landes diz, e bem, a República não foi construída apenas sem as mulheres, mas sobretudo contra elas. Não disse Hegel que a mulher é a eterna ironia da comunidade? E não está no nosso tempo enxertada a dialéctica hegeliana de forma bem viva, naquela medida que justifica um mal actual para atingir um bem futuro? Curiosamente, a mulher seria a figura da ironia pela sua situação radical e pessoal, já o homem avançaria no caminho da abstracção e imparcialidade. Mas, convenhamos: não se verifica, afinal, um devir-feminino da cultura há cerca de, pelo menos, dois séculos? Maria Helena Varela nele reflecte com propriedade, por exemplo: na valorização da pele. A questão passa por uma necessária calibração, sob pena do devir-feminino da cultura ser apropriado pelo masculino, como aliás Luce Irigaray justamente alerta: toda a teoria do sujeito tem sido por ele apropriada e projectada na grande tela do Mesmo, que entretanto encontra o seu negativo existencial no corpo dos homens.

Esta exposição exige um olhar generoso e também apaixonado sobre todas estas questões. A sua permanência no Museu Arpad Szenes – Vieira da Silva é muito significativa, já que se Arpad também vela por Joana Rosa, Paula Rego, Patrícia Garrido e Fátima Mendonça, concretamente no espaço que confronta as escadas de acesso à sala principal, também é verdade que no pequeno corredor de passagem entre esta sala e o espaço seguinte, e onde de Raquel Feliciano se vêem O Céu e a Terra (Os Amantes), permanecem de Fernando Lemos duas fotografias relativas ao casal. São os seus títulos Maria Helena Vieira da Silva. Andamento sem registo e Arpad Szenes. Saber mais próximo. Sucedem-se quatro salas e uma passagem-varanda também utilizada para expor, quatro obras. Ressalto, ao longo deste percurso, mas já antes enunciada, a intercalação de pinturas de Vieira da Silva mais raramente vistas e que se afirmam como preciosidades. A exposição termina, muito justamente, com um STOP de Inês Botelho, instalação de sinal de trânsito trazido da Aldeia da Luz.

O “gosto pessoal” de Pedro Cabrita Reis e a sua proposta de “encontros”, como vincou quando com ele conversei sobre A metade do céu e instada pela polémica criada em torno desta exposição, é aqui inapelável. A sua contribuição para o debate entronca indelevelmente na escolha “pessoal, afectiva, decerto apaixonada” que alimentou A metade do céu. Clarificando a afirmação de “que a arte foi e sempre será avessa e imune à ideologia”, Pedro Cabrita Reis precisamente entende que a arte “resiste à apropriação pela ideologia”, de que o título, um verdadeiro arremesso poético, será exemplo revelador. Não se diz que o poema ensina a cair? A arte é lugar, por excelência e numa sociedade de instrumentalizações, de maravilhamento raramente transposto, como o vinca bem Luce Irigaray, para as relações entre homens e mulheres. E é verdade: existe a diferença, em cujo horizonte a igualdade surge enquanto princípio social de justiça; há que manter esta polaridade. Mas para lá de iguais, as mulheres e os homens deveriam, mesmo, era cultivar a semelhança. Parece a mesma coisa? Poderá parecer: mas não é!

Repito: até 23 de Junho, no Museu da Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva, Praça das Amoreiras, 56, 1250-020, Lisboa, de Terça a Domingo, entre as 10h00 e as 18h00.

Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva

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