Terceiro retrato que resulta da Residência Artística decorrida no Conímbriga Hotel do Paço, em Condeixa-a-Nova: Juan Domingues na minha tentativa, espero que bem-sucedida, de aceder a uma obra/personalidade de profundidade e sentido inequívocos.
Confesso: gostaria que este texto, na sua pulsão de escrita, pudesse reproduzir a forma como a mão de Juan dançava ao fixar, a carvão, o perfil de um amigo. Enquanto tal se desenrolava, os meus olhos acompanhavam os seus gestos como se se tratassem das linhas de fuga, sempre diagonais, de que fala Gilles Deleuze: a feiticeira a rasgar a realidade. Portanto, para que à partida não sejam gerados equívocos, Juan Domingues possui, e derrama, um traço inigualável que provém da sua mão, senhora de uma atenção insone. Quando era criança pequena, o agora pintor, e como partilhou durante a Tertúlia sobre Arte ocorrida no dia 15 de Outubro, dedicou-se num intervalo de tempo a partir quase todos os copos de cristal existentes na sua casa: a repercussão do som produzido, certamente pela vibração, fascinava-o: hoje, relaciona tal fascinação com a sua sensibilidade face ao universo dos sentidos e correlativa necessidade de expressá-lo. O outro lado da questão: saturar o processo até à exaustão do pensamento; caminho no qual a História, a Literatura e a Filosofia ajudam a cimentar a (sua) arte.
Juan Domingues constrói, apagando, “temas” que lhe fazem companhia numa espécie de obsessão em que a “figura”, avultando aqui o “rosto”, é atacada interiormente num ponto abstracto do seu próprio corpo e espírito. Tendo revelado uma admiração por Emmanuel Levinas, explicou que Totalidade e Infinito, obra importante deste filósofo, andou nas suas mãos por longos anos, tendo sido descoberta na sequência de O Retrato de Dorian Gray, da autoria de Oscar Wilde. Porquê a permanência de Totalidade e Infinito na sua vida? Porque, certamente como os copos de cristal, a acentuação do “rosto” em Levinas o prendeu: tentou colocar-se na pele do pensador lituano e, através de tal exterioridade, encontrar o seu rosto próprio. Aliás, os exercícios infinitos em que retrata os outros perfilam-se como caminhos em que busca compreender a si próprio; pese embora, reconhece que tal diferimento espelhado adensa as máscaras e, talvez por tal, não se auto-retrate (ainda não tem coragem, afirmou…).
Considera que a obra permanece sempre entre-aberta e que, por essas fissuras inerentes, a invasão espreita por vezes impiedosa, pelo que a sociedade, no seu todo, não “olha” verdadeiramente; ou seja, Juan, que não pertence a uma linhagem familiar ligada às artes, embora tenha encontrado a sua família de expressão, e que se confronta, inclusivamente, com a excentricidade da sua opção de vida, entende que a especulação actual pode matar o magma criativo do artista. Convive, não sem tristeza, com esta inflacção e defende o seu espaço utópico com ferocidade, onde se inscrevem, entre outro/as: Lucian Freud, Francis Bacon, Mark Rothko, Willem de Kooning, Rubens, Bernini, Jenny Saville … Aliás, quando conheceu a obra de Jenny Saville empalideceu e sentiu um conflito interior abissal: porque se deparou com alguém que pensava/desenhava do mesmo modo! O que fazer? Juan, digamos, recuou e reconheceu que a matéria-prima pode ser a mesma, mas os temas e as questões são diferentes, nestes inscrevendo-se o ADN de cada pessoa, também o seu, e prosseguiu. Por onde? “Por que razão somos como somos”? Interroga-se e tenta encontrar o equilíbrio entre dois termos: a mitologia da Antiguidade Clássica, destacando-se a Grécia Antiga, e a História da Contemporaneidade. Questionei: por exemplo? Respondeu: Prometeu, por exemplo, roubou o fogo aos Deuses e ofereceu-o aos Homens, tendo por tal sido castigado; então, e continua, será que os Deuses já sabiam que íamos chegar às armas nucleares?
Neste momento, Juan Domingues trabalha três temas ao mesmo tempo e afirma que responde de forma incoerente, através deles, de forma inusitada, como se se tratassem de embates. Aqui insiste nos instintos enquanto estímulos. E adoptou para si uma afirmação que algures, há muito tempo, ouviu ao seu lado: “Defendo a paleta cromática como se fossem cicatrizes.” Questionei: sim? “Estás a misturar cores, sensações. A paleta conta uma história de vida. O artista é quem se submete à crítica e o primeiro crítico é o artista, e é o que basta. A outra crítica é consequência. Para as coisas se tornarem reais precisam de ser expressadas.”
Quando Juan se auto-retratar, tenho a certeza de que o fará como Emmanuel Levinas afirma que deve ser a responsabilidade de cada ser humano ao proferir o seguinte: “Eis-me aqui!” Mas também sei que o seu rosto nos confrontará de tal forma corajosa, despojada e exposta, que murmurará sem estridências ao mundo o que Levinas também assegura que o Rosto do Outro ordena, pois encarna um mandamento crucial: “Não matarás.”