Pedro Figueiredo: ver pelos pés

Último retrato resultante da Residência Artística que entre 15 e 21 de Outubro se manteve no Conimbriga Hotel do Paço, em Condeixa-a-Nova: Pedro Figueiredo, escultor, quem entende que a escultura permite interrogar o espaço e a arte eleva o ser humano.

Fez a sua formação na ARCA-EUAC, em Coimbra, onde viria a ser professor de Artes Plásticas e Desenho, até à extinção daquela escola de artes; a partir de 2001 tem exposto, ininterruptamente: foi desta forma que se apresentou no início da Tertúlia sobre Arte, ocorrida no dia 15 de Outubro. Ainda falaria de outras coisas, todas elas importantes: a forma como os pés grandes das suas esculturas (sendo que estas olham para o céu) se relacionam com a elevação proporcionada pela arte; a pertinência do espaço vazio nas suas obras, porta que dá acesso ao invisível e geralmente apresentando a forma triangular, de simbolismo evidente; a forma como a arte torna visível, dando a ver “coisas” que de outra forma permaneceriam informuláveis, sejam a música, sejam o silêncio; a urgência da necessidade de “desformar”.

Na conversa que nos uniu relembrou, na abertura, o filme Clube dos Poetas Mortos, essencial para si, e reconheceu: ninguém quer que os seus filhos sigam arte! Mas…entre o barulho e a sujidade inerente ao exercício de construção da escultura, bem como em face de toda a logística mais complicada que comporta, escolheu-a porque a forma, o vazio, a ausência e a presença, questões primordiais que lhes associa, o perseguem, e vice-versa. Três frases-sentenças, ou melhor, quatro, foram proferidas ao longo desse final de tarde e ecoaram-me: “Eu não ensino, insinuo”, caçada a um antigo professor; “O artista não deve ter medo”; “O artista deve andar no limite para não morrer”; “A pessoa deve ter mais saudades do futuro”. 

Pedro é muito rápido no diálogo e as suas asserções deslizam, como se tentássemos agarrar água nos intervalos dos dedos das mãos: constantemente foge/m, pelo que o meu olhar era algo como uma entidade vibrátil que seguia, sincopada, a sua agilidade mental. Uma certeza se inscreve na minha memória: Pedro Figueiredo acredita na arte a pés juntos! E porquê? Por várias ordens de razões. Assim: porque a arte congemina a ligação intrínseca ao/do humano; porque a obra de arte toca as pessoas e proporciona que permaneçam acordadas, com os sentidos despertos; porque a arte é o contrário da moda; porque uma escultura, e uma obra de arte na sua especificidade, é uma flecha veloz apontada; porque a arte é uma missão, especialmente relacionada com a acção de dar, não se ausentando daqui um intuito didáctico de natureza particular; porque cabe aos artistas apurarem a sua vocação para o conhecimento universal, ao insistir no mistério do ser humano.

Com asas, rotundas, os pés amiúde desenvolvidos, pregadas nas paredes e tectos ou encostadas a uma árvore, sentadas ou mantendo a verticalidade irrepreensível, as esculturas de Pedro povoam o espaço, nele interferindo porque abrem fissuras ou criam jardins à sua volta. Insiste nas figuras, pese embora as trate como entidades irradiantes, ou seja, como as presenças que, em estreita correlação com o espaço vazio, se propagam energeticamente. Daí que fale nas esculturas como mensageiras, detentoras de uma animação constitutiva, tanto operantes no actual, como objectos que atravessam o tempo. Neste atravessamento temporal, Pedro Figueiredo defende que a obra de arte inquieta, provoca, o que deriva, sobretudo, do facto de o artista trabalhar com a sensibilidade, onde destaca a centralidade da intuição; e encontrar, aqui, a vibração certa, como diria Kandinsky. Ao longo da nossa conversa, Pedro estabeleceu um contraponto entre a arte e a culinária (sim!), nesta medida: a mesma receita feita por pessoas diferentes dá origem a sabores diversos, tanto quanto a arte e a culinária exigem um apuramento dos sentidos e do paladar, remetendo, portanto, para a questão do gosto que tão vilipendiada segue nestes tempos de meta-reflexão em que afirmar “eu gosto” ou “eu não gosto” pode soar sacrílego. Enquanto dialogávamos e o meu olhar era, repito, algo como uma entidade vibrátil que seguia, sincopada, a agilidade mental do escultor, numa zona semi-consciente do meu corpo instalou-se uma referência: Musset em memória de René Huyghe quanto ao ser ignorado que cada um/a de nós traz em si acamado e cuja expressão perceptível implica mergulhar em águas progressivamente mais profundas, acção que se traduz numa inerente solidão face ao social. E relembro uma das quatro afirmações, acutilantes, de Pedro Figueiredo: “O artista deve andar no limite para não morrer.”

© Fotografia: David Alves

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