Gustav Klimt ou … para “vós” basta?

“Mulher sentada com as coxas separadas”, de 1916, em explícito acto de masturbação, de olhos cerrados e bastante sonhadora, e abandonada a si pela mão do delicado e atento Gustav Klimt, bastará para fazer o acto de contrição do modernismo?

Uma das reivindicações prementes pelas mulheres no presente, seja no que respeita à arte, seja no que se refere à capacidade de criar na generalidade, seja um prato através do design, seja uma ideia através da filosofia, seja um embrião através da biologia, radica na positividade das suas imagens: serem reconhecidas enquanto autoras. Neste quadro desejante proliferam, e bem, as histórias que desentranham das pregas do tempo artistas, filósofas e cientistas; o rácio nem sempre satisfaz, já que a fome é negra e o grande estômago transcendental é masculino. Acresce, como também bem frisa Teresa Joaquim, que as mulheres se marcam pela impermanência, pela interrupção, pelo in-comum, o que as tem afastado do tempo corrente do Mundo. 

Locus de imagem por excelência, a arte do passado, ou os seus pilares masculinos, tem/têm sido acusada/os de reificarem imagens do eterno feminino, de transformarem as mulheres em bonecas de luxo, em gatas borralheiras, em pin-ups, em todo o caso, de usurparem corpos que não são seus, que não lhes pertencem, que não conhecem, mas que sugam imaginariamente, para distribuir pela sociedade ideias cristalizadas, construídas secularmente, e que se abatem sobre as cabeças desconsideradas das mulheres. Claro que o passado entoa, sobretudo, canções muito graves e em que as sopranos têm sido ocasionais; o modernismo, com a sua declarada ou latente misoginia, continuou a seguir o rio/el dourado.

Todavia… temos de dar a mão à palmatória em alguns casos, parece-me; a não ser que a quem se apresente branco, queira sempre o preto, ou a quem se mostra azul, morra de amores pelo verde, ou que ache que o amarelo ficava mesmo bem era se fosse vermelho. Se a postura for a negação da parte pela parte ou pelo todo, então, reconheço que vai ser difícil; mas se olharmos com atenção para as obras de arte de alguns homens, e não são poucos, acho que vamos gostar muito, muito mesmo. Eu gosto muito de “Mulher sentada com as coxas separadas”, de Gustav Klimt; e até acho que o Gustav Klimt também gostava. Quero com tal afirmar que, em inúmeros casos, na arte como na vida, eles amam realmente as mulheres, e isso é bom. 

No caso que agora temos “em mãos”, de Klimt, gostaria de realçar a total imersão da mulher no seu gozo, sublinhada pelo sono/sonho em que parece permanecer abandonada; o facto de não olhar o/a observador/a, cujo primeiro seria certamente o próprio artista, e de manter-se frontalmente em relação a nós, confere-lhe um estatuto de existência, diria, total, bem como de beatitude arrebatadora. Ocorre-me agora a “Origem do Mundo”, de Gustave Courbet, quadro que suscitou já algumas exposições públicas audazes, e passíveis de enquadramento legal, por parte de mulheres que denunciam a brutalidade do pintor, o que quer dizer, o seu descaramento ao escancarar o sexo feminino: porque Courbet é homem, e os homens não podem usurpar o sexo das mulheres.

Convenhamos, e recorrendo um pouco à psicanálise, cujos contornos não domino de todo, mas em que, através de mediação analítica, consigo descortinar algumas lições óbvias, tanto quanto saudáveis. O meu corpo não é absoluto e a realidade não é bruta: sobre aquele recaem olhares e construções alheio/as; sobre aquela fazem entrada imagens mnésicas, tanto de fonte individual, como partilhadas em termos sociais. Ou seja, não se pode acusar uma civilização de ter construído secular e socialmente um corpo amorfo – o da mulher, para, no mesmo gesto, exigir a privatização do corpo, porque tal significa impedir que o feminino, sistematicamente barrado, possa gerar novas energias colectivas; não se pode denunciar a ingerência dos homens no perfilar de subjectividades femininas desencarnadas, para, no mesmo gesto, distribuir inquéritos que aferem a orientação sexual da população, porque tal significa atomizar de forma descarada o social, impedindo que brote aquilo a que, por exemplo, Emmanuel Levinas, chama o humano, mesmo.

Por mim, com toda a sinceridade e a maior das satisfações, vou continuar a olhar “Mulher sentada com as coxas separadas”, de Gustav Klimt, com o sorriso interior mais recôndito que brota de mim, acompanhado da flexão exterior de lábios que manifeste o mais assaz contentamento. Desejam fazer-me companhia?

Imagem de entrada: pormenor de “Mulher sentada com as coxas separadas” de Gustav Klimt

Já recebe a Mutante por e-mail? Subscreva aqui .