Alberto Giacometti e Annette Arm 1

Foi em 1961 que Giacometti pintou “Annette”, sua mulher até ao fim, em óleo sobre tela; também pintou, porque, a par com o irmão, Diego, Annette seria a modelo repetidamente decalcada da vida, para na arte diluir-se através das mãos do artista.

Alberto Giacometti foi afastado pelos Surrealistas, Antonin Artaud foi banido por eles: Breton deveria ter um tom vociferante… Algo une Giacometti e Artaud: o que o primeiro sentia por dentro e se via de fora, o segundo punha dentro o que se sentia de fora. Não me peçam, por favor, para explicar o que acabo de enunciar, e isto porque existem coisas que, ou se sentem, ou se sentem-não. Giacometti e Artaud sentiam-nas, e elas continuam repercutindo: Annette hierática e Artaud que poderia, também, estar disfarçado de Annette.

Chegámos civilizacionalmente a um ponto tal em que de facto não podemos, por exemplo, pendurar-nos no artista, descortinado no seu sistema privado, nem sequer é suficiente fazer uma prospecção assistida por descrição-sensorial-auxiliada, e a máxima “cada um vê o que quer” não funciona, porque nem sequer está correctamente colocada: quando muito, seria – “cada um vê o que pode.” Através de Annette, aqui, vejo Giacometti e vejo Artaud: porque o primeiro a amou e pintou, porque o segundo, mesmo sem a conhecer, o que se aplica ainda a toda e qualquer mulher, encarnou no feminino.

Annette foi amada por Giacometti: não é um corpo-inanimado-objecto que o artista repetida e mecanicamente transferiu para, neste caso, a tela, com o objectivo de engrandecer a sua posição de sujeito-criador. Giacometti olhava e perscrutava Annette, a sua mulher, certamente com um olhar cego e com as mãos bêbedas, cada traço afigurando-se queda livre, até surgir outra coisa. Pelo que em “Annette” não vemos apenas um retrato de Annette, ou uma transposição visual de uma disposição de Annette, mas sim a relação entre Annette e Giacometti, até surgir outra coisa. 

Giacometti foi amado por Annette: ela foi de Zurique para Paris e viveu com ele em condições humildes, porque sim, era isso, era amor. “Annette”, pese embora possa vir aqui retratada hieraticamente, diz-se, com a marca das máscaras fúnebres às quais Giacometti reservava predilecção, não significa uma objectificação da mulher, mas antes a relação, interior e inviolável, entre Giacometti e Annette. Para de tal termos a certeza absoluta, basta fazer uma breve pesquisa, a permitir observar a cumplicidade que os associava. 

Vejamos: existem, não duvido, várias formas de fazer algo, de pintar algo, até pela raiva, como quem escavaca a tela, o outro e o mundo. Não é este o caso. Imagino Giacometti e Annette, e para isto sou auxiliada pelas fotografias, frente a frente, olhando-se firmes e suspensos, habitados – os olhos de um e de outra a visitarem o interior, existentes numa parcela de realidade radicalmente inventada. Algo da ordem daquela serenidade à superfície, pele que contém a ternura que é a única, mas a única coisa viva à superfície, também, da Terra. 

E Antonin Artaud?

Imagem de entrada: “Annette” de Alberto Giacometti

Já recebe a Mutante por e-mail? Subscreva aqui.