Alberto Giacometti (e Antonin Artaud): “Nu…”

Na Fondation Giacometti, em Paris, incluída no corpo da obra de artes gráficas do artista suíço, mas que em Paris criou o seu útero fermentador, conta-se também este “Nu Debout à Mi-corps”.

Pertence a Colecção Privada e não está datado. Trata-se de um pequeno desenho – 7,08 x 4,33 cm, feito na página de um livro com caneta de cor azul; era habitual Giacometti desenhar em livros, jornais, revistas, em ocasiões muito variadas. Junto ao corpo sem cabeça que se observa, o artista escreveu o seguinte: “L’ indicible. oui / lui aussi / a fait des / torses des femmes / Tout. / rien”. Se olharmos com atenção, ou melhor, até basta um olhar imediato, veremos que a inscrição se dispersa pelo desenho, vindo diferentes secções a confrontar partes diferenciadas do corpo: “L’ indicible. oui”, num plano superior, no espaço que seria equivalente ao da cabeça, inexistente; “lui aussi / a fait des / torses des femmes / Tout.”, coincide com o torso precisamente; “rien.”, faz referência ao plano inferior do corpo.

Diria que existem aqui dois silêncios primordiais: um plasmado numa ausência – plano da linguagem; outro vincado num recalcamento – plano dos desejos inconscientes. Juro-vos: não tenho fascínio evidente por interpretações, ou aproximações, alicerçadas em campo psicanalítico, mas aqui caem como luva de veludo, escaldante. E a questão é inflamável, ainda, porque Giacometti sintetiza visualmente um dilema que se reporta a um plano imanente da contemporaneidade. Passo a explicar. Existe um devir-feminino da cultura detectável, apesar de lento e sub-reptício, que, como frisa Maria Helena Varela, “não mais se contenta com o dizer e o fazer excessivos da razão unívoca, disseminando-se esta contestação ao logocentrismo ocidental, pelas suas franjas mais esquecidas e silenciadas tais como: a natureza e o animal, o corpo e a sensibilidade, o feminino e a loucura, esses héteroi encapsulados e/ou recalcados numa razão que só se escuta a si mesma.”

Esta emergência do feminino como paradigma cultural, todavia, é complexificada, em tempo síncrono, sem, entretanto, aqui enunciar outras heranças, pela forma submetida como Jean-Jacques Rousseau, ideólogo-pai-luz, vê a mulher em face dos homens: com uma boca cujas palavras sopradas são estéreis e vãs, para melhor ser observada. As mulheres falam, para Jean-Jacques Rousseau, com os olhos, com as maçãs do rosto, com as pálpebras, com o sobrolho franzido, com a pupila dilatada, … Bom, Rousseau não diz exactamente como é que os homens devem falar com as mulheres, mas, pela linguagem-muda delas, depreendemos que os homens falam com as mulheres através do nariz. 

Neste entorno, ou seja, vindo o devir-feminino com falha desde o início, veremos porque, por exemplo, um Antonin Artaud apelará a um corpo sem órgãos: o desejo de fugir à lei, ao instituído. Simultaneamente, as lutas do feminismo dito histórico iniciam-se, com as mulheres a pretenderem cidadania por reacção mimética, ou seja, identidade soberana, mas levando em torrente o seu próprio corpo, ele sim, um real corpo-sem-órgãos. É muito curioso observar que Gilles Deleuze vá beber ao corpo sem órgãos de Artaud e que, por exemplo, Rosi Braidotti vá, por sua vez, beber a Deleuze no sentido de inspirar, e encorpar, uma teoria no feminino, esquecendo, neste percurso, o corpo das mulheres.

É então agora que “Nu Debout à Mi-corps”, de Alberto Giacometti, adquire um sentido fascinante: o cumprimento do plano dos desejos inconscientes está em relação directa com o plano da linguagem e este, sem apelações, reporta-se ao feminino, não prescindindo das mulheres, nem das suas “palavras” efectivas. Porque, reparem, se fosse possível cumprir o devir-feminino sem as mulheres, se fosse possível cumprir o corpo sem as mulheres, se fosse possível uma linguagem feminina sem que a boca se materializasse, também, em lábios de mulher, Giacometti teria ali colocado uma cabeça. Mais não o fez, como ainda escreveu: “L’indicible. oui”. E é por isso, também, que se trata de “Mi-corps”.

Eu até diria que tudo, isto, está à frente do …”Le nez”…

Imagem de entrada: “Nu Debout à Mi-corps” de Alberto Giacometti

Já recebe a Mutante por e-mail? Subscreva aqui.