“L’Angélus”, com Millet

Jean-François Millet pintou “L’Angélus” entre 1857 e 1859: trata-se de um óleo sobre tela, com as dimensões de 55,5 cm x 66 cm e pode ver-se actualmente no Museé d’Orsay, situado no coração de França, ou seja, Paris.

Algures na noite há um pensamento que se instala na minha mente: “Eu paro”. Logo a seguir tive a percepção exacta de que a arte o faz: parar. Após esta ligação ocorreu-me conjugar o verbo “parar” no presente indicativo: eu paro, tu paras, ele/ela/você pára, nós paramos, vós parais, eles/elas/vocês param. Enquanto o fazia, há um quadro que vai descerrando-se na minha memória: não me lembrei logo do seu título, fiz um esforço também para recuperar o nome do pintor, mas consegui ver claramente o casal e o campo. Fui pesquisar e, ao deparar-me com “L’Angélus”, sim, tudo se tornou confluente. Trata-se de uma imagem tão longínqua, “L’Angélus”, de uma realidade que a Terra parece ter engolido, de um tempo já inexistente, de gestos irrecuperáveis. Fiquei por um bom momento a admirar este quadro de Millet, numa espécie de suspensão e de vez em quando olhava através da janela do quarto: em primeiro plano encontra-se uma pequena casa em ruína, logo a seguir um terreno relativamente extenso, para ao longe se avistar uma língua do casario que pertence à vila. 

E o tempo, a interrogação sobre o tempo, ia tomando forma, ia interrogando-me, ia formulando algumas inquietações. Por exemplo, de como o tempo está em relação directa com o movimento e com o espaço. Sim, o tempo é variável e relaciona-se com a ocupação diferenciada de múltiplos espaços, para cujo atravessamento o corpo se convoca através do movimento. E agora o mundo parou; quando tudo se havia preparado para dizer às pessoas que o mundo nunca poderia parar: parou. Poderão contrapor: mas existem coisas, pessoas, espaços, que continuam em movimento; sim, mas não é mimetizado o ritmo anterior. Em “L’Angélus” a luz provém do Sol, o tempo é o do dia e da noite, é o da semeadura e da colheita; ao longe perfila-se a torre de uma igreja, portanto, o tempo também é o do interior. 

Penso, então, de como a sobreposição das cidades ao mundo rural eclipsou para sempre, tal como uma espécie de manto metálico, o tempo da natureza. Vejo de relance passarem os Futuristas, com Marinetti à cabeça a conduzir um Ferrari amarelo, e Duchamp no fim da cauda ao volante de um carro totalmente nu, em substituição do seu “Nu descendo uma Escada”. Passaram tão velozes, tão siderados, tão metálicos, nem viram o casal de “L’Angélus”. E o campo nunca mais foi o mesmo. E o tempo mudou. E fizeram-nos acreditar que nunca poderíamos parar, e se tal acontecesse apenas existiriam, com toda a certeza, duas explicações: preguiça ou doença, imputadas como insidiosas pestes às pessoas.

A arte faz parar. É certo, sim, que também nos dota de um propulsor interno, de um detonador de implosão, mas não, não, naquele sentido de fazer encaixar-nos certeiramente na máquina de engolir e deglutir o tempo. A arte faz parar. E volto a conjugar o verbo “parar” no presente indicativo: eu paro, tu paras, ele/ela/você pára, nós paramos, vós parais, eles/elas/vocês param. E guardo ciosamente dentro de mim “L’Angélus”.

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