“Sombras Projectadas de Lourdes Castro e René Bertholo”: a Morada

1964, ano em que Lourdes Castro deixaria registadas as “Sombras Projectadas de Lourdes Castro e René Bertholo” na parede de uma casa em Paris; hoje, as sombras de ontem continuam a pedir que sigamos o gesto tão delicado da artista.

Tal como em “O Pequeno Mundo”, as “Sombras Projectadas de Lourdes Castro e René Bertholo” ocorrem no interior; todavia, apesar de aparentemente projectarem uma maior abertura, tanto relacionada com as características internas à obra, como com a circunstância em que a própria imagem se encontra exposta, a conclusão a que se chega é que, em lugar do escancaro-claustrofóbico demonstrado pela encenação visual de Jorge Molder, aqui, e agora, existe recolhimento e possibilidade de propagação, o que vinca uma respirabilidade redentora. Quais as razões para falar aqui de recolhimento e de propagação, já que “Sombras Projectadas de Lourdes Castro e René Bertholo” se dão numa claridade tão ampla, como podem verificar pela imagem? É o que vou tentar explicar-vos a seguir.

No interior da imagem Lourdes Castro fixou através do contorno tudo quanto é digno de memória, traduzido pelo par mulher/homem que, serenamente sentados à mesa, e cerimoniosamente, procedem à sua refeição. Todavia, este enquadramento interior desdobra-se num exterior, para o qual a mesa serve de limiar, e que é ali simbolizado pela cadeira vazia: o par mulher/homem, por tal, pode receber-nos, acolher-nos, fazer-nos entrar na imagem. Assim, apesar das personagens permanecerem extremamente absortas e concentradas, recolhidas numa intimidade inquestionável, a própria imagem simula propagar-se, seja através da nossa entrada nela, possibilitada pela cadeira, seja pela voluptuosidade das sombras, que são cheias e irradiantes.

Lourdes Castro chama à sombra o Menos, e sabemos que a sombra é de natureza etérea; mas aqui é voluptuosa e voluminosa, porque na área interior que delimitam avulta algo muito carnal, vindo a inscrever na imagem sensações de cheio, de plenitude, de arquejo pneumático. O que faz aqui a diferença é que tais sensações de cheio, de plenitude, de arquejo pneumático, estão contidas, de-limitadas, circunscritas, o que não significa que tal diminua a sua capacidade de propagação, antes pelo contrário, exacerba-a, porque evita, com o mesmo gesto, que se diluam, que se liquidifiquem, que escorram e se apresentem para nós indistintas. 

Da contenção, de-limitação, circunscrição, creio podermos, já que a sombra proporcionada pelos contornos serve de testemunho em relação a algo que aconteceu, extrapolarmos no sentido de aqui vermos, intactamente defendida, a memória; e nós, já que a cadeira permanece no exterior da imagem, somos convidada/os também a partilhar a memória, no caso aqui em reflexão, a de Lourdes Castro. É muito interessante verificarmos que, em termos construtivos, “Sombras Projectadas de Lourdes Castro e René Bertholo” exibe os recursos da perspectiva linear: a pirâmide, o círculo, a ortogonalidade da vertical e da horizontal; o elemento que poderá instabilizar esse espaço é a diagonal estabelecida pela cadeira, que, por tal, nos convida a entrar na imagem. 

“Sombras Projectadas de Lourdes Castro e René Bertholo” manifesta então algo que se passou e que, por isso mesmo, é contornado pela memória, criando uma espécie de cristal que trazemos no bolso para as ocasiões de melancolia; por outro lado, porque se abre ao exterior, e porque a própria imagem abre um exterior, podemos chegar a duas conclusões: somos convidada/os e testemunhas, simultaneamente, portanto, passeamos dentro da imagem, tanto quanto a perpetuamos. Desta forma, “Sombras Projectadas de Lourdes Castro e René Bertholo” abre-se, disponibiliza-se, ao futuro, mas também o age: isso é muito bonito. Porque nós podemos recordar Lourdes Castro e René Bertholo na ocasião da sua refeição cerimoniosa, mas também podemos reinventar, dialogando com “Sombras Projectadas de Lourdes Castro e René Bertholo”.

Proponho-me e proponho-vos: que nos reinventemos através das Sombras, criando a Morada.

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