“The Boating Party”, também com Mary Cassatt

A sete anos de chegar a 1900, quando se pintavam as impressões, Mary Cassatt começaria o “The Boating Party” que apenas acabaria um ano depois, ou seja, em 1894, pelo que durante dois anos navegou aqui firmemente com a sua mão. 

Virginia Woolf, no ano de 1931, nomearia o “Anjo da Casa”, aquele que cada mulher teria de matar se pretendesse ser escritora. E porquê? Para que fosse possível à mulher escritora desvendar o corpo feminino, escrevendo simultaneamente com o seu corpo e dando, por outro lado, a ver, assim, outro corpo. Após a morte do anjo, que restaria? Sigamos as suas palavras: “Poderíeis talvez dizer que o que restava era um objecto simples e comum – uma mulher jovem num quarto e um tinteiro. Por outras palavras, agora que ela se tinha livrado da falsidade, a mulher tinha apenas de ser ela própria. Ah! Mas o que significa ‘ser ela própria’? Isto é, o que significa ser mulher? Asseguro-vos que não sei. E tão pouco acredito que o saibais.”

Maria Isabel Barreno, por sua vez, e no prefácio que assina para Um Quarto que seja Seu, de Virgina Woolf, afirmaria que a importante escritora inglesa “conseguiu evitar os alienantes sentimentos de ódio e de medo, conseguiu o seu ideal de escrita íntegra, sem contestações. Mas o preço foi o desespero, a morte. A total impossibilidade de encontrar outras conclusões”; para ainda defender “que a visão das mulheres sobre o mundo, originada pelas suas milenárias relações de servidão ou por qualquer misteriosa «natureza», encontre seus meios de registo colectivo, esse é, realmente, o objectivo a conseguir.”

Ana Gabriela Macedo, setenta anos após Virginia Woolf ter nomeado o nosso “Anjo da Casa”, viria confirmar que as suas palavras “não perderam ainda a veemência: muitos têm sido os espectros com que se têm deparado as mulheres na sua conquista do direito à partilha do espaço público, na inscrição da sua voz, da sua identidade e da sua diferença no território espácio-temporal ocupado. Reclamar esse espaço, redesenhar-lhe as fronteiras e questionar-lhe a memória dominante tem sido, historicamente, a tarefa do feminismo.”

Mary Cassatt foi, além de pintora impressionista especiosa, uma defensora assinalável dos direitos das mulheres, pelos quais pugnou, implicando-se nos movimentos sufragistas e tendo ainda conseguido assistir, nos Estados Unidos da América, país onde nasceu, à conquista do direito ao voto. Nestes termos, a sua pintura “The Boating Party” não é por mim escolhida aleatoriamente, antes relacionando-se com as reflexões até aqui explanadas. Pergunto. É a figura feminina no barco o “Anjo da Casa”, ou seja, a mulher solícita, compassiva, sem desejos, inócua, que se afigura necessário matar? É a criança que leva nos seus braços o símbolo de uma natureza maternal feita condição de existência-prisão? É a figura masculina o rochedo, o espectro, o fantasma, a demover do seu caminho e, por tal, da vida da(s) mulher(es)?

Talvez, pela minha parte, e a esta distância, olhasse “The Boating Party” não como materialização visual da eterna fixidez dos papéis de género, mas sim no acordo que denota: na composição firme, no arrojo da cor e sua original aplicação, na sensação que transmite quanto ao movimento do barco. Por outro lado, não consigo deixar de pensar que há aqui, em “The Boating Party”, outro tipo de acordo, mais fino, mais interior, mais da ordem das emoções e que, sim, se relaciona com o facto de ser retratada uma mulher com uma criança no colo e um homem a remar. É algo da ordem da relação e da co-existência, algo que me parece poder encontrar-se, sobretudo e/ou tendencialmente, na arte provinda de mão feminina.

Imagem de entrada: “The Boating Party” de Mary Cassatt

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