Foi no ano de 1957 que Remedios Varo, pintora surrealista nascida em Espanha, concretamente, em Anglès, pintaria “Creación de las aves”, quadro que pode admirar-se no Museo de Arte Moderno, Chapultepec Park, Mexico.
A pintura de Remedios Varo inscreve-se no surrealismo de cariz metafísico onde se acentuam, geralmente e sobretudo, a magia, a fantasia e o mistério. Remedios Varo, pintora surrealista, portanto, nascida em Espanha no ano de 1908, viria a encontrar no México refúgio em face da guerra que se desenrolava na Europa e, por tal, “Creación de las aves” permaneça em Chapultepec Park, no Museo de Arte Moderno. Quero crer que a ambiência desta sua proposta de evasão pode inspirar-nos, no seguimento de René Magritte, concretamente, na Futuração que propus como última etapa da hipótese ensaiada para “Os Amantes”. Evasão não significa alienação, mas sim intensificação da realidade, ao proporcionar uma saída de si-mesmo, ou seja, da náusea, por um lado, e, por outro, uma recusa em ocupar cristalinamente um “lugar” que o nascimento pode derradeiramente prometer, dançando incansavelmente em torno, portanto, do umbigo da H/história.
Sendo a Futuração marcada pelo tempo inacabado, eis que “Creación de las aves” toca em pontos de (vo)luminosa inspiração, nomeadamente, na capacidade de ser inventado, entrevisto, perspectivado, arremessado, um novo mundo pelas “mulheres”, através, precisamente, da escrita. Se o século passado, o XX, foi o que assistiu à entrada das mulheres na esfera pública, não é menos verdade que uma boa parte das pensadoras, e também na Filosofia, “foram incompreendidas ou ignoradas pelos seus contemporâneos, que não souberam apreciar o alcance da sua especulação filosófica”, diz-nos Juan Fernando Ortega Muñoz na apreciação que faz de uma obra de Maria Zambrano.
Com efeito, se analisarmos o “lugar” das mulheres através da História concluiremos pela sua fuga: sempre estiveram “fora”. Um “fora” naquele sentido dado por Golgona Anghel e Eduardo Pellejero para o da Filosofia, ou seja, o “lugar” da erosão. Em tal circunstância, e sendo o Ser um dos feitiços mais bem engendrados da nossa civilização, encarnado depois uma e outra vez – Espinosa, Heidegger, Hegel, para unicamente fixar poucos, eis que as mulheres têm sido as “parteiras” milenares da carne do Ser, e apenas há bem “pouco tempo” começaram a praticar tiro ao papel com a sua caneta-bisturi. Claro que podemos interrogar-nos, como o faz Camille Paglia, acerca das razões que levaram a tão longo exílio, e não quero que aqui se imprima a derradeira imagem da crueldade masculina; mas que, historicamente, os homens se irmanaram, formaram corpo-corporação e, com tal, um tampão que obstou à passagem do feminino, parece-me pacífico afirmar. Aliás, tal tampão recrudesceu na Modernidade, o que a República tornou lei: se assim não tivesse sido, convenhamos, compreender-se-iam as lutas feministas eclodidas na abertura da Idade Contemporânea, e hoje movimento/s inquestionáveis?
E é precisamente porque as mulheres fora/m exteriores ao Ser que acontece não terem uma casa na linguagem a onde regressar: o seu tempo é Agora, de acordo com a tonalidade, também, que Walter Benjamin dá ao “Agora” – um momento de clarão, de intensidade, luminoso, em todo o caso, de perigo. Futurar o tempo não significa vilipendiar o passado, esquecendo-o; mas tal não significa trazê-lo como foi, antes como poderia ter sido, e (também) é. Esta é uma perspectiva que obriga a ver tudo de novo, a reavaliar tudo, o que sem dúvida se apresenta como um acto bastante trabalhoso, não é? Todo/as nós necessitamos de “fórmulas” simplificadoras que nos protejam, que nos resguardem, que nos defendam das intempéries, sei disso: não se pode permanecer constantemente a questionar tudo, por exemplo, como os semáforos, um verde é para avançar e um vermelho é para parar, sob pena de provocar o caos e lançar a comunidade num perigo, aqui, verdadeiramente evitável… O que não se pode é aplicar a lógica dos semáforos a tudo.
Simone Weil – a gravidade, a graça, a espera de Deus, uma pensadora da grande fome, como se lhe refere Peter Sloterdijk, irmanou-se com o/as mais carregado/as pelo trabalho, que quis se lhe entranhasse até aos ossos, e entranhou até ser, também, a causa da sua morte; Etty Hillesum – viu a beleza nos campos e nos escombros do horror, em pleno Holocausto, apresentando-nos uma riqueza interior fina e fílmica, feita de idas e vindas, de intuição, lutas, e de clarões redentores; Maria Zambrano – inventou as metáforas com o (seu) coração e perseguiu os sonhos, decantando a sua “razão poética” com mãos de fada-madrinha para quem hoje, e sempre, a ela queira regressar; Cristina Campo – quis salvar, e salvou no que escreveu, apenas aquilo que é vivo numa época, através da atenção que defendia e que praticava como uma joalheira da memória, circundando as suas análises como quem burila, precisa e cortante; Julia Kristeva – demonstrou, explicando claramente, a forma com a Virgem cristã foi(/é) condição intra-psíquica para a eclosão da arte Ocidental, protegendo o artista (homem), e defende, entre outras coisas igualmente essenciais, a importância de cada um/a de nós encontrar a sua economia discursiva; Luce Irigaray – a sua luminosa consideração da “diferença sexual” como a grande questão filosófica da nossa época, provavelmente, mesmo, “a” questão, aquela que, sendo bem pensada, pode salvar-nos; Sylviane Agacinski – no meio das metáforas que provêm da guerra colocou os pontos nos i’s e tratou de afirmar que vivemos uma “política dos sexos”, alertando para os perigos severos actuais, ou seja, a produção de um “homem desencarnado” e, por tal, sem transcendência.
Estas mulheres, e outras, elevaram e elevam as palavras ao seu “sabor máximo”, expressão que Cristina Campo cunhou com o seu cinzel de escultora, de jóias-memória. Quem as lê, quem realmente as lê? E, lendo-as, a quem entram no corpo? E, entrando no corpo, de que forma fertilizam a realidade? Olhemos, bem, “Creación de las aves” …