A Resistência Íntima: Ensaio de uma Filosofia da Proximidade provém do ano 2015, quando se publicou originalmente em Espanha pela Acantilado, Barcelona. Recebeu o Prémio Nacional de Ensayo 2016 e o Prémio Ciutat de Barcelona de ensaio em 2015, foi traduzido para português e é disponibilizado agora, em 2020, pelas Edições 70.
A “resistência íntima” é uma ética do deserto e implica a casa, fazer casa; o que em nada nos deverá remeter para o domínio do privado, e deste versus o público, já que se trata de defender uma metafísica do ajuntamento. Radical, a “resistência íntima” é, tanto um espaço interno ao sujeito, como uma palavra que alimenta outrem e a quem a pronuncia, vindo a demonstrar-se igualmente uma cura, e desenrolando-se num horizonte de proximidade: no coração e na consciência; no quotidiano e na linguagem; na filosofia enquanto resposta ao trauma. Assim, ressaltam-se: acolhimento e sensibilidade; simplicidade e sinceridade; junção e diferença. Defende o canto e o silêncio fecundo, que o mesmo é dizer: a harmonia da melodia e do recolhimento.
Divide-se em três momentos e em dez andamentos: “O Prato na Mesa” e “Cultivar o Jardim” e “O Suor Subatómico da Água”; “Desagregação e Resistência” e “Cartografia do Nada” e “Voltar a Casa” e “Elogio da Quotidianidade: Quão Simples é a Vida” e “Breve Meditação Médica” e “Cuidar de Nós sem nos convertermos em Narcisos” e “Não ceder ao Dogmatismo da Actualidade” e “O Oceano ou o Deserto?” e “A Essência da Linguagem como Amparo” e “Uma Metafísica do Ajuntamento”. Ao longo dos três momentos e dos dez andamentos muitas são as fugas-figuras que poderiam encetar-se, ou seja, muitas são as pontas dos fios que, puxadas, nos levariam para visões que se sobreporiam, sempre, à riqueza vibrante do sentido e explanado; sim, porque se Josep Maria Esquirol apresenta o niilismo, para lá de uma estilização epocal, como uma experiência, A Resistência Íntima. Ensaio de uma filosofia da proximidade, mostra, no sentido que dava a “mostrar” Walter Benjamin, a sua própria experiência, existencial e filosófica, ou seja, resistente. Trata-se, contudo, de uma resistência doce e amorosa, que sabe que o si-mesmo não é um couraçado, mas antes de mais fortaleza macia.
Sempre se nos afigurou absolutamente misterioso que a “música” como coordenada filosófica, que devemos essencialmente “à paixão por/de Richard Wagner” de/por Friedrich Nietzsche, tenha enveredado pela consideração tão efusiva da música dita erudita, sem se deter na “canção”. Um dia encontrámos em Emmanuel Levinas a confirmação da nossa suspeita e desconfiança, quando o pensador lituano radicado em França precisamente defende a “canção” enquanto saturação do humano, e onde se pressente um comum precioso. Josep Maria Esquirol, então, não descurando a força do martelo, que usa parcimoniosamente, parece-nos apresentar, pelo selo da experiência, o sino. Sabe-se que o “martelo” usado por Nietzsche era demolidor, furioso, vociferante, implacável, impassível, numa palavra: destruidor. Pois tratando-se de desconstruir a metafísica como totalidade, e correlativo enfraquecimento da vida, tal “martelo” soou como mil tambores tonitruantes; apenas acontece que, face à desconstrução inapelável, e cega, o seu agente actual corre o risco de morrer no deserto em vista da água que não alcança por erro de cálculo milimétrico e encarnar em Bartleby, o herói literário de Melville que Josep Maria Esquirol oportunamente invoca no seu desconcertante lema: “Preferia não o fazer”, para preferir precisamente fazer, mostrando.
Uma filosofia do martelo, não sendo exercida genial, derradeira e honestamente, pode degenerar numa crítica verborreica feita “às três pancadas”; sim, porque Friedrich Nietzsche também atravessou a noite do niilismo completamente nu, dando-se um segundo nascimento. O que talvez se esqueça é que este filósofo também enlouqueceu para que “nós” não enlouquecêssemos, para obstar a umas núpcias repetidas de determinado grotesco com a vida. Então, é como se Josep Maria Esquirol, ciente de que o niilismo é, para lá de uma estilização epocal, repetimos, uma experiência, e em que no mapa que nos é facultado à entrada do “barco” vemos “nada” e tudo igual simultaneamente, nos alertasse; sim, estamos nus/nuas mas podemos agasalhar-nos: com a memória, com a casa, com a palavra, com a música.
Toca o sino em A Resistência Íntima. Ensaio de uma filosofia da proximidade, proporcionando um horizonte de esperança onde se perfilam: acordo, ritmo, melodia, harmonia. Questionamo-nos. A quem interessa separar? A quem interessa desintegrar? A quem interessa degenerar? A quem interessa abater os seres humanos, literal e metaforicamente? A quem interessa que as pequenas linhas verticais que Josep Maria Esquirol diz serem as pessoas dispostas sobre o plano horizontal terrestre, caiam por terra? A quem interessa deitar Narciso no divã do psicanalista para que continue a privatizar os “seus” sonhos, os “seus” desejos, os “seus” amores? A quem interessa colocar nos sujeitos o chip de um “reconhecimento” colectivo, extirpado através de um número anónimo, para guardar o segredo da omnividência no Big Brother?
Nós somos números, repete-se. Não tenhamos dúvidas, todavia: porque uns são mais números do que outros; bastaria começar a contar, aliás, 1, 2, 3, 4, 5 … 10 000, para verificar que os primeiros números ainda poderiam ecoar na memória da história, mas chegados/as ao 10 000, e tendo passado por todos os outros, já estaríamos no âmbito da estatística. E os que são mais números, ou de grandeza maior, são os ilustres e as ilustres desconhecidos/as do “público”, entendido este numa dupla asserção: como espaço/tempo partilhado em termos sociais; como individual/colectivo que assiste a algo que se desenrola. O que “vem a público” é, assim, algo que corresponde a esta dupla asserção: que é visto e sobre o qual se fala, comenta, reflecte, de forma individual/colectiva. Os que sabem contar apenas até 5 deveriam contar 1 por 1, o que, indubitavelmente, exige grande ascese e, claro, “resistência íntima”.