São catorze, pintaram-se entre 1819 e 1823, primeiro sobre as paredes da casa de um Goya já bastante envelhecido, depois trasladadas para a tela; Las Parcas (Átropos), em concreto, mede 123 x 266 cm e encontra-se no Museu do Prado, em Madrid.
São conhecidas como Pinturas Negras e, com efeito, apresentam-nos céus fechados e faiscantes, terras de opressão, de dúvida, de injustiça, personagens sombrias, porque ou dilaceradas, ou desesperadas, ou hesitantes, ou de deboche. Correspondem a um contexto bastante singular na vida de Francisco de Goya, já que, como crente nos valores da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade, Fraternidade, e crítico acérrimo de Espanha, foi perseguido e macerado, quer pelo que pintava, quer pela atitude de confronto que adoptou. O Museu do Prado proporciona um entendimento bastante completo das Pinturas Negras, uma por uma, contando ainda a forma através da qual transitaram das paredes da casa de Goya para a tela. Agora, o que gostaria de reflectir, colocado à vossa consideração, será no motivo que numa delas, esta, cativou o pintor – as parcas.
Façamos antes um desvio, todavia. Les Demoiselles d’ Avignon, de Pablo Picasso e pintada em 1907, costuma ser apontada como a obra de arte que abre a porta ao cubismo e à arte abstracta, logo, ao concreto modernismo. Apesar de apresentar cinco mulheres, e não três desnudadas, parece-me relativamente pacífico olhá-la enquanto variação das Três Graças, talvez numa acepção levemente hardcore: com efeito, não há como evitar pensar no misógino século XIX, quando as modelos, quer das escolas de arte, quer dos pintores efectivamente, entreteciam ligações directas com a prostituição. Talvez por tal o primeiro título imaginado para esta obra por Picasso tenha sido Bordel Filosófico. Aqui, nesta crítica subjacente, já se pode verificar uma vocação da arte moderna: dialéctica estreita e intrínseca com o tempo – il faut être absolument moderne (Rimbaud) e espécie de pugilato com o mundo. Pese embora, trata-se de uma ponderação progressivamente acelerada e essencialmente negativa. Curioso é que se acuse a arte moderno-modernista de défice de correlação com a natureza, ao preferir fazer aquilo que será uma pintura de pintura, aquilo em que algumas pessoas encontram, pelo contrário, a pintura com maior exactidão: a retracção do espaço extenso da representação, a progressiva planura adensada pela matéria pictórica, o pintar a partir de dentro, e não projectando.
Portanto, quase arrisco afirmar que Las Parcas (Átropos), de Francisco de Goya, e Les Demoiselles d’ Avignon, de Pablo Picasso, são obras parentes com cerca de cem anos de intervalo: uma assume o desígnio mitológico optando pela terceira Parca, a da Morte (Átropos) e outra desconstrói as Graças, divindades associadas à Beleza. A primeira anuncia uma hecatombe, tanto da arte, como da História, e a segunda confirma o desastre anunciado, embora muito longe da citação, e paródia, pura e dura. A primeira, em agonia, demonstra a actualização de um problema civilizacional de longa duração; já a segunda vem mostrar-nos como o tempo vai progressivamente contrair-se, também para a arte. Mas, repare-se, o tempo contrai-se, essencialmente, porque à morte simbólica sucede o trono do/a artista, situação sobremaneira agudizada para a chamada arte contemporânea, pese embora o élan social e político reivindicado em alguns casos.
O problema não está em um/a artista ser individualista até ao osso, nem sequer em proclamar a sua solitude (que insisto não dever ser encarada como uma estilização romântica, mas antes situação de vida), contrabalançados com grupos de acção (na arte como na vida, existe muita variação); mas está, o problema, ao encerrarem-se as obras de arte nos gabinetes de curiosidades: de que o/a artista é figura ostensiva, mas onde podemos também inscrever a bolsa de valores ou a pontuação crítica. Quando tal acontece ocorre-me a veloz Virginia Woolf quanto à consideração do que pensava ser a literatura – selvagem como o vento, e de como a foi encontrar, afinal – um senhor idoso de cartola numa sala a falar para umas senhoras que encetaram acérrima guerra entre si. A arte moderno-modernista mostrou-nos; se a encerrarmos nos gabinetes de curiosidades, então, Les Demoiselles d’Avignon é simplesmente uma demonstração de Picasso e Goya tinha razão quanto ao nosso destino ao pintar Las Parcas (Átropos).