Jheronymus Bosch e as TENTAÇÕES

As Tentações de Santo Antão estão em Lisboa, no Museu Nacional de Arte Antiga, provêm do Palácio das Necessidades e do ano de 1913: qualquer semelhança com a realidade é um acaso histórico.

Jheronymus Bosch foi um pintor dos Países Baixos pertencente aos séculos XV e XVI, mais ao primeiro e menos ao segundo: morreu em 1516, três anos antes de Leonardo da Vinci, quem nasceu dois anos após Bosch, por exemplo, e marcou muito singularmente a pintura flamenga do seu tempo, vindo ainda a seduzir o surrealismo quatrocentos anos mais tarde. Com efeito, Bosch pintou paisagens de delírio e escatologia óbvia, procedendo a uma categorização de personagens entre o humano/animal e vegetal, com pormenores escapistas, digamos assim, que parecem vir de longe, mas simultaneamente nos tocam irremediavelmente. Este quadro, Tentações de Santo Antão, um tríptico e óleo sobre madeira de carvalho com as dimensões de 131,5 x 119 no painel central e 131,5 x 53 cm nos painéis laterais, vem-nos de 1500, o último ano do século XV. Como qualquer tríptico, conta uma história, prática da qual uma considerável parte da arte moderno-contemporânea se vem afastando. Ou seja, acoitada no choque, no novo/na novidade, na dialéctica da autonomia, a arte vem sem nome tantas vezes, abrindo-se, ou melhor, escancarando-se: ou porque sem título, ou porque, sem ou com título, não é capaz de instaurar o seu núcleo no coração da percepção. Note-se: não repudio o s/título, mas questiono, apenas, uma determinada qualidade imanente com que se relaciona o s/título. 

Sabe-se que a arte moderno-contemporânea repudiou a mimesis, sobretudo a que se particulariza através da representação, reivindicando para si tarefa mais profunda e abissal: dizer a verdade do mundo, e das coisas e pessoas que o habitam, tarefa a que Maurice Merleau-Ponty reconhece um desígnio metafísico. No altar da verdade procedeu-se a um sacrifício: o da pintura, prática artística que, além de ter estabilizado a economia do quadro, foi paulatinamente en/quadrando o mundo, e as coisas e pessoas que o habitam. Todavia, o sacrifício é complexo, e já Mário Cesariny, por exemplo, alertava para o risco de, no caso, os artistas portugueses, irem a Paris para trazer nos olhos as raparigas de Gromaire, os relógios de Dali, as pombas de Picasso, etc., etc., que derramavam em instantâneo nas superfícies do “quadro”. Ou seja, o/a artista, ou desenvolve o seu “sistema” interno, tornado obra, ou, de contrário, arrisca-se a colocar-se na determinada qualidade imanente, essencialmente, sem nome. Questiono: Jheronymus Bosch, pese embora a carga delirante, deve ser banido das nossas inquirições, reflexões, sensibilidades? Ou seja, por ter pintado montanhas, e pássaros, e ovos, deve ser olhado pelo prisma da densidade histórica, simples ilustração, sem comportar a possibilidade de, vindo do século XV, 1500 repito, irromper no presente, que fende, que revolve, vivendo ainda e também? 

A pintura pode ter en/quadrado o mundo, e as coisas e as pessoas que o habitam, por sensivelmente quatro séculos, mas a verdade é que, simultaneamente, criou uma pele no olhar. Retirada essa pele, ou melhor, raspada pela arte moderno-contemporânea e, correlativamente, por todos os movimentos que exigem verdade, obtém-se o modo transparente: transparência processual, transparência de intenções, transparência de critérios; vivemos actualmente na sociedade de clamor pela transparência. No entanto, a raspagem criou igualmente uma ferida, sobretudo relacionada com a ponderação entre o real e o imaginário: convém estarmos atentos/as a ela. Porque um “quadro” não fala, mas diz!

+ Imagem de entrada: Tentações de Santo Antão de Jheronymus Bosch

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