A empatia, também com Johannes Vermeer

Existe uma reflexão em torno dos artistas e dos homens que os encarnam que nunca alimentei, até agora. Por tal, este é um pequeno contributo, que espero válido, para uma discussão importante.

Basicamente, creio que a reflexão gira em torno da genialidade e da empatia, e se se perdoa a um génio como artista o seu completo descuido em face do/as semelhantes, descurando responsabilidades com afectos e as sociais. Talvez deva de antemão avisar que não darei uma resposta a preto e branco, mas, ao invés, tentarei colocar diversas questões, não exactamente contrastantes ou alternativas, mas antes problematizantes. Porque se existe algo que também me deixa perplexa é, nas explanações, fazer-se desfilar um cortejo de afirmações, teorias-possibilidades, visões, sem construir um ponto de vista com alguma solidez, e espessura. Não sendo igualmente o meu estilo adoptar uma postura mesmo impressionista; o que se pensa é resultado de fértil convivência com inúmero/as Outro/as. Se assino na primeira pessoa é porque adopto a urgência que Emmanuel Levinas tão bem soube fixar: “Eis-me aqui”, naquele sentido, tão importante quanto necessário, de escrever com o corpo, dando às palavras um sujeito. 

Maurice Merleau-Ponty demarca o artista das lutas quotidianas, reconhecendo-lhe uma ir-responsabilidade consentida pelo/as demais. Seguindo o seu raciocínio, se, desde Friedrich Nietzsche, não se perdoa a um filósofo e, por extrapolação, a todos os portadores de conhecimento, não enxertarem o seu pensamento na vida, a verdade é que um artista pode fechar as janelas enquanto decorre uma guerra e pintar, voluptuosa e desesperadamente, no seu quarto, alheado do sofrimento. Todavia, a postura de Merleau-Ponty estará sobretudo correcta se encararmos a arte moderna como uma “aventura” metafísica, que é a sua posição, mas já se complexificaria se, com Diogo Alcoforado, por exemplo, a encarássemos com um sentido trágico. Registe-se que englobo a arte contemporânea na categoria da arte moderna, que inclui igualmente o modernismo, sendo este tempo-fragmento de maior aceleração relativamente a uma alteração paradigmática no que respeita à percepção da arte, e por inerência da realidade, que a arte moderna instaurou e que ainda não foi desmentida, a meu ver. Regressando ao assunto, e se seguirmos Peter Sloterdijk, Nietzsche vem colocar os homens completamente na sua própria pele, singularizando o pensamento, e, neste sentido, talvez pudéssemos concluir que, sendo os artistas um desvio, dizem, antes, não a sua pele, mas a do mundo.

Acontece que a arte moderna propõe um regime referencial com um diferencial importante: da natureza como modelo empírico passa-se à memória como estertor, essencialmente pictural, primeiro, para alastrar depois pelas restantes “disciplinas” artísticas, várias que resultam mesmo da desconstrucção do espaço da pintura. Aliás, os surrealistas, por exemplo, rechaçaram também Alberto Giacometti porque teimava em criar com modelo à vista. Neste entorno, os artistas vêm de olhos bem fechados e imersos, a que não é avessa a marca tangencial do Romantismo; por isto se acentua a vontade de ver com o coração. O problema passará por saber por quem esse coração bate, e, se bate; não afirmou Klee o seguinte: “o coração que bate por este mundo está em mim quase morto”? E não foi Walter Benjamin buscar a Paul Klee o seu/dele “anjo” da História? A tónica na memória será também aquela, e vendo sob o prisma da singularidade, a posicionar o artista de forma irredutível, mas, corações ao alto, numa natureza que é agora espécie de gigante pista de gelo, não no sentido da frieza, mas no da velocidade de deslizamento. Sabemos que, por uma parte, este posicionamento levou àquilo a que chamaram “arte pela arte” ou ao que José-Augusto França denomina “pintura de pintura”. Mas não existe “arte pela arte”, pura e simplesmente, não existe.

Penso que Walter Benjamin, nesta floresta, pode ajudar-nos quando distingue as estrelas do passo fraterno. Para este pensador, e para mim, e para vós certamente, existem noites tão cerradas que nenhum voo se afigura possível em face da negritude abismal: e é nelas que as obras de arte aparecem como as estrelas iluminantes, capazes de transformarem o medo em esplendor. Todavia, imaginemos que as nuvens cortam a visibilidade das estrelas, e volta a rondar-nos essa noite tão espessa: como superar o medo? O medo é apenas passível de ser superado pelo passo fraterno, assim, pela palavra rememorativa que um ser humano consegue dirigir ao/à semelhante. Donde se conclui pela existência simultânea da arte e da vida: a arte ilumina; a vida salva. Sem a arte, a nossa vida ficaria mais pobre; sem a vida, a arte tornar-se-ia imperceptível.

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