Light Coming on the Plains / Georgia O’Keeffe

A reflexão que se segue é feita na companhia de Georgia O’Keeffe, concretamente, de uma das aguarelas que pintou no ano de 1917, intituladas no seu conjunto “Light Coming on the Plains”.

Embora já reconhecesse parte da obra de Giorgia O’Keeffe, confesso que desconhecia estas aguarelas: foram-me recentemente apresentadas por uma amiga que anda em deambulação, exterior e interior, pela causa do silêncio e da natureza. Sempre tive um gosto muito acentuado pela aguarela, que considero ser uma técnica preciosa, terna e doce, e exigente na precisão que demanda. Ao deparar-me com as da série “Light Coming on the Plains” fiquei muito entusiasmada e extasiada, pela sensibilidade apurada que apresentam, e mais agradada porque funcionaram como inspiração para a minha amiga também desenhar e pintar, mais uma vez. Além de tal, reparem que nas aguarelas de Giorgia O’Keeffe se dá realce à luz que aparece através de uma impregnação, também essencial, da água.

E o que é um amigo e uma amiga senão luz nas nossas vidas? Mas o que é o humano senão água? Emmanuel Levinas fala sobre a necessidade de extrair alguma água dos textos; pois me parece que em relação aos seres humanos se passa algo análogo. Um amigo e uma amiga são uma preciosidade, claro, luz, repito, e calor que dela advém; um ser humano é um passador de água. Não se trata do ser impessoal, do anonimato, da casca de vida, mas de vida realmente, o que acontece quando se esquecem alguns requisitos muito, demasiado, valorados na actualidade: proveniências e filiações, sobretudo. Não é curioso que uma gravidez se intitule “estado de graça” e um nome de uma pessoa também seja passível de ser chamado de “graça”? 

Há 15 anos, no ano de 2005, permanecia no miradouro de São Pedro de Alcântara em Lisboa, sentada num banco que ainda hoje poderei identificar, e chorava compulsivamente. A dado momento sinto uma mão no meu braço esquerdo e uma voz que me pergunta: “O que tens?” Era um senhor, que com quase toda a certeza, pela forma como se apresentava, era sem-abrigo. Respondi-lhe que poderia permanecer ao meu lado o tempo que quisesse, mas implorei-lhe que nada me perguntasse; ele ficou ao meu lado o tempo todo. Acalmei-me, levantei-me, agradeci-lhe muito e ainda hoje sinto aquela presença tão atenta, o cuidado que revelou, o calor intenso que dele emanou, a água que passou entre nós. Ele não sabia quem eu era, nem eu alguma vez soube de quem se tratava, mas o que se passou entre nós foi de uma beleza de cortar a respiração.

Por isso defendo que os seres humanos são passadores de água, e não estátuas pétreas em que embatemos como carros de choque desvairados. Claro que defender tal implica algumas pré-condições, quase como Immanuel Kant fez, de sensibilidade e atenção: é necessário criar um espaço de inscrição dentro de nós, humanos. Para que esse espaço seja operante, será necessário articular harmoniosamente a memória e o esquecimento: a primeira relativamente ao próprio espaço de inscrição, que não pode saturar-se e de quando em vez exige, talvez, uma espécie de purga; o segundo relativo ao mal, mas também ao desnecessário, ao que não contribui para que possamos seguir em frente. 

E note-se que a própria técnica da aguarela nos dá esta medida, ou seja, os operadores de uma técnica são também eles valiosos e significativos, e demonstrativos, e metafóricos: não é a mesma coisa pintar a aguarela ou fazer uma assemblage; donde a arte ensina-nos, por dentro, dá-nos uma medida que pode muito notoriamente transportar-se para a vida, mesmo antes da obra de arte propriamente dita, e mais antes do/a próprio/a artista, que é também ele/a um/a passador/a de água. Claro que tudo está, afinal, junto: a técnica, a obra de arte e o/a artista, e já agora, também quem frui. Uma aguarela mais dificilmente é sensual, como um óleo o pode ser; uma escultura de pedra está mais predisposta a ser austera do que uma outra em madeira, o ferro parece induzir frieza, e assim por diante. Os seres humanos também podem medir-se por aqui, mas não esquecendo que são, precisamente, luz, calor e passadores de água.

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