“Humano, más humano. Una antropología de la herida infinita” trata-se do último livro de Josep Maria Esquirol, editado pela Acantilado em Barcelona no mês de Março de 2021 e com nova impressão em Abril: mais um passo no caminho da filosofia da proximidade proposta pelo filósofo.
Bastas vezes, e não me é dado conseguir explicar exactamente qual a origem desta situação, se deslocam (ou deslocavam intensamente, antes da pandemia) pessoas no mundo como se fossem bonecos de papel recortados que se dispõem em cenários que vão, unicamente, variando. Está certo que podemos remontar a nossa indagação ao século XIX e insistir na centralidade da gare e, consequentemente, da “viagem” enquanto iniciação reconhecida aos jovens europeus, candidatos sérios à condição de homens universais que dessa forma se confrontavam com outras realidades, com as diferentes civilizações, com, de forma generalista, o “outro”. Mas era um “outro” engendrado, essencialmente, no seio do “mesmo”; talvez Arthur Rimbaud seja, simultaneamente, o expoente máximo desta matriz do “viajante”, tanto quanto a sua antítese febril, ao distender a incansável deambulação até ao deserto de África. E é também no deserto que Josep Maria Esquirol insiste, mais exactamente, na “conspiración del desierto”; sendo, no entanto, de relevar que se trata de lugar sem parte certa no planisfério terrestre, mas antes de uma morada assente no coração humano. “Humano, más humano. Una antropología de la herida infinita” é, pois, a enunciação de coordenadas espaciais e a formulação de um mapa que possam apoiar a “viagem”, agora tão urgente, às profundidades do coração humano enquanto morada primordial.
Aos homens universais que percorriam o mundo desafectadamente Friedrich Nietzsche chamou-os de “medrosamente escondidos.“ Pois bem, dialogando Josep Maria Esquirol com Nietzsche, logo pela ressonância do título do seu livro, eis que, além de procurar o “mais humano” ao invés do “demasiado humano”, dá também a ver esse coração que, apesar de defender o recato, o pudor, a lisura, a temperança, o equilíbrio, não se esconde, não, pelo contrário: é abertura essencial do humano. E é abertura porque a sua condição é a de uma ferida. Toda a ferida enuncia uma abertura, ou seja, uma passagem, logo, um acesso, a que Josep Maria Esquirol chama, então, as “puentes.” Assim, o ser humano responde porque está derradeiramente afectado, que o mesmo é dizer, ferido: pela vida, pelo tu, pelo mundo, pela morte. Da vida avulta o gosto; do tu o amor; do mundo o assombro; da morte a angústia. Será derradeiramente fulcral que Josep Maria Esquirol, nesta sua proposta de reflexão, embora saiba que nem tudo vai bem, acentue sempre a esperança, prefira as boas palavras, realce a positividade da obra, insista obsessivamente no bem. Mas há uma raiz para a sua/nossa esperança, para as suas/nossas boas palavras, para a sua/nossa positividade da obra, para o seu/nosso bem: a incrível ocasião de virmos à vida, pelo nascimento, que o filósofo privilegia em face da concepção que nos crê sermos, sobretudo, seres para a morte. Da potência contida no “nascimento” provém uma fonte inesgotável: de possibilidades, de começos efectivos, de encantamento, de reencantamento. De facto, é muito diferente considerar o minuto seguinte àquele em que nascemos como o que nos aproxima do fim, logo, da decadência, logo, do desaparecimento letal, de, pelo contrário, dançar e cantar em torno daquilo a que já chamei o umbigo da História, que é esse ponto cego na nossa vida em que chegamos à Terra, onde fomos mormente esperado/as, como indica Walter Benjamin.
Josep Maria Esquirol escreve “Humano, más humano. Una antropología de la herida infinita” em forma de ensaio, e, pese embora reitere que tal opção de escrita apresenta vantagens, admite que não está isenta de certas limitações relacionadas, sobretudo, com uma espécie de conceptualização mais vibrátil e, por tal, passível de gerar uma sensação mais impressionista ao/à leitor/a. Não existe, assim, um índice exaustivo e dissecador neste livro. Mas é apresentada, logo à partida, a sua proposta de constelação conceptual, a que se segue a precisão de pontos rutilantes: são focos a meia-luz iniciais que funcionam como possíveis ordenadores e ressoam à medida que vamos lendo o livro, emergindo no pensamento que nos proporciona, que nos fazem uma “companhia” bondosa. De resto, este livro, que é viagem, que é experiência, está pejado de pirilampos que parecem dizer-nos que estamos sempre, ou no amanhecer ou no entardecer, a meia-luz, nas transições, nas passagens, nas “puentes”: essencialmente, ferido/as.