Nos acordes d’O Gajo

O Gajo. Expressão bem portuguesa. Pseudónimo artístico usado por João Morais para o seu projecto a solo de Viola Campaniça em riste e que nos traz a esta entrevista que aqui vos desvendamos.

Depois de 30 longos anos mergulhado na música Punk-rock, João Morais reinventa a sua sonoridade com a tradicional Viola Campaniça, do nosso Alentejo. Na bagagem, para estes dois dedos de conversa, traz o seu último trabalho de originais “Subterrâneos”.
Um álbum onde João Morais surge pela primeira vez num formato de trio e nos diz, na sua apresentação, que “com Carlos Barretto no Contrabaixo e José Salgueiro na Percussão, surgem composições mais arrojadas que transportam a Viola Campaniça para novos e mais ambiciosos territórios. O resultado é sempre surpreendente e inovador conferindo novas potencialidades musicais a este cordofone tradicional.”

Sem mais rodeios: João Morais – O Gajo.

Como é que tu, João Morais, vais parar ao mundo frenético do Punk e que ficou em ti do irreverente legado que sentes que jamais deixará de estar presente em ti, quer modo de estar na vida, quer na tua música?
(JM):
Na casa onde cresci não se ouvia música, não se liam livros, não se falava de política, não se consumia qualquer tipo de cultura. Por isso, quando em 1988 entrei para a Escola de Artes António Arroio abriu-se um grande mundo novo, cheio de gente um pouco diferente do que estava habituado, com espírito crítico, com interesses fora da caixa e, acima de tudo, que procuravam ser mais eles próprios do que ser aquilo que os outros esperavam deles. Esse impacto foi brutal em mim e quis acompanhar essa forma de afirmação. Fiz muitos amigos novos, comecei a ouvir música mais pesada e com pendente mais interventivo; comecei, também, a frequentar concertos, espaços mais alternativos, a tocar guitarra e a ir a manifestações. Essas sementes floresceram e foram sendo sempre regadas, pois ser crítico relativamente ao que passa à minha volta é uma postura que considero ser essencial.
E nada disso ficou para trás, creio…
(JM): Nada disso ficou para trás, pelo contrário. Hoje, interesso-me mais por estar informado, por escolher que música oiço, que livros leio, por tentar ser mais verdadeiro relativamente aos meus talentos naturais e não passar a vida a reprimi-los ou a contraria-los. O Punk foi sempre para mim uma ideologia, uma forma de estar na vida e não uma farda. Tento ser o menos controlado possível pelas forças exteriores e a nível artístico isso é hoje mais verdadeiro do que alguma vez foi. Se a musica Rock e o Punk também têm as suas fórmulas para corresponder aos anseios de um público específico, com o projecto O Gajo liberto-me mais disso e construo música que corresponde mais às minhas concepções do que às de quem me ouve.

Deslindemos a Viola para quem possa não estar tão a par da nossa música tradicional.

Corrige-me se estiver errada. Falamos de uma Viola Alentejana de cinco cordas (a maior viola portuguesa), instrumento do universo tradicional, usada para cantares à desgarrada e despique em festas e feiras do Alentejo. É isto, é algo mais?
(JM):
A Viola Campaniça tem 10 cordas que correspondem a 5 ordens duplas e sim, é um instrumento Tradicional do Baixo Alentejo. Era usado para acompanhar os cantares a despique nas festas Alentejanas. Tem uma técnica específica que consiste em ser tocada com o polegar visto ser usada essencialmente para acordes de acompanhamento. Um dos factores especiais destes instrumentos é o facto de serem construídos em Portugal de forma Artesanal e por pessoas cheias de talento, sensibilidade e bom gosto. Sinto-me melhor a poder contribuir para a sustentação deste setor.

Porquê especificamente esta Viola Campaniça para quem andou 30 anos em guitarras Punkianas? Quando e onde se deu a mudança de rumos no teu dedilhar?
(JM):
Nos últimos anos aproximei-me do género “World Music” e o que caracteriza este género é exactamente a utilização de instrumentos tradicionais das suas geografias de origem. Se ouvires um projecto Indiano poderás ouvir uma Cítara, se ouvires um grupo da Guiné, poderás ouvir uma Kora, um projecto Russo pode usar a Balalaica ou um do Perú usará a Quia. Procurei algo que desse uma geografia Portuguesa à música que criava e para isso achei que teria que usar um instrumento nosso, de raiz tradicional. Dentro da grande família de Cordofones Portugueses, a Viola Campaniça foi a que melhor se adaptava ao que pretendia, pois tem um bom espectro de frequências e precisava disso para um projecto a solo. Tinha também um braço mais largo e mais parecido com os que já tocava e a adaptação pareceu-me ser mais simples. O aspecto visual destas violas também me cativou e o som é muito envolvente e sedutor.

– “Os verdadeiros progressistas são os que partem de um profundo respeito ao passado.” – Ernest Renan.

Como construíste tu a relação, de profundo respeito, com o passado da Viola Campaniça, com a sua geografia, sonoridade e história?
(JM):
Sempre vi o passado como uma espécie de alicerce para o que constróis no presente, dando-te a hipótese de corrigires as coisas negativas e afirmares as positivas. A história que a Viola já trás consigo não deve ser ignorada, pois isso pode descaracterizar totalmente o instrumento que é o foco central do meu projecto. O respeito que tenho pela tradição desta viola fez com que nunca tentasse tocar de forma tradicional, pois não sou Alentejano e não quis começar a remexer terra que não era a minha. Pensei sempre na viola como alguém que deixa o Alentejo e vive hoje na cidade de Lisboa, alimentando-se de toda essa cultura mais urbana, ganhando novas formas, mas mantendo sempre algum sotaque original e um orgulho na sua terra de origem.

Agarrando directamente em Ernest Renan, trazer o tradicional para universos sonoros de onde não são originários e dar-lhes novas envolventes sonoras e explorar as suas características.
Concordarias em dizer que é saber reinventarmos a tradição?
(JM):
É isso que faço. Quando adquiri a primeira Viola Campaniça, fechei-me na sala de ensaios um ou dois meses só à procura de uma orientação. Fiz muitas experiências de amplificação de som, de afinação, de processamento de som, etc. No fundo quis perceber o que é que a Viola me sugeria para encontrar um caminho que gostasse e que a Viola aceitasse. Esse caminho não está completo e o interessante é que cada Viola que tenho sugere coisas diferentes. Cada Viola é uma obra única com especificidades particulares, com personalidade própria, parecidas com as que sempre procurei como ser humano e que tento sempre expandir e não limitar. A nossa cultura tradicional está cheia de matéria prima de muita qualidade que pode potenciar muito o impacto dos nossos projectos no mundo.

A tradição musical constrói-nos ou aprisiona-nos?
(JM):
O aprisionamento só acontece se deixares de ler, de ouvir, de ver ou de sentir. Quem se mantiver bem “alimentado” neste leque dos sentidos nunca se sentirá aprisionado, mesmo que a sua matéria seja a tradição.  A tradição é sempre fruto de um determinado presente e o importante é desenvolvermos o nosso trabalho sempre de forma dolorosamente verdadeira. São esses trabalhos de grande profundidade que se tornam importantes para toda uma comunidade e que passam a fazer parte integrante da nossa história.

Em 2017 editas “Longe do Chão”. Dois anos depois, em 2019, dá-nos o quádruplo EP “As 4 Estações do Gajo” e agora, neste 2021, é tempo de “Subterrâneos” onde surges numa nova abordagem ao teu trabalho para o formato de trio com Carlos Barretto (Contrabaixo) e José Salgueiro (Percussão).

Dizes-nos, na tua apresentação do álbum: “O confinamento obrigou a uma menor relação com os outros e a uma maior proximidade com o nosso eu interior. Por fora somos o que queremos que os outros vejam, mas é por dentro que está o que verdadeiramente somos e isso nem sempre é um bom reflexo. Que reflexos nos contas tu?
(JM): Esta pandemia veio revelar muitas coisas a nível pessoal e da forma como nos relacionamos com os outros. Por um lado, privados do contacto com os outros, vimo-nos aprisionados com a nossa pessoa interior e se alguns encontraram coisas positivas, muito foram os que revelaram egoísmo, cobardia e intolerância. O reflexo disso era visível no aumento da violência doméstica (física ou psicológica) e nos problemas de desenvolvimento das crianças que foram mal acompanhadas ou no proliferar das teorias da conspiração que alimentam toda uma rede de pessoas mal intencionadas. Os grandes parasitas deste país são pessoas com um aspecto exterior chamado “impecável”… Fatos caros, perfumes caros, mas podres por dentro.
Claro que centrei a atenção nestes casos, mas houve também muitos bons exemplos por esse país fora.

Para rematar este ponto, se houve maior proximidade com o nosso eu e nem sempre isso é um bom reflexo… Como é que isso se traduz no álbum que nos dás, na tua sonoridade? Que nos diz a tua música…
(JM):
Acho que o tal espírito crítico que fui adquirindo ao longo do tempo deu jeito nesta fase. Quando me apercebi da total paragem a que estaríamos todos sujeitos, fiz uma análise do que tinha à disposição para transformar toda essa incerteza e energia negativa em algo positivo e construtivo e tudo apontou para a Viola Campaniça. Os meus dedos e este meu instrumento não estavam aprisionados e tenho em casa muitos livros, muita música, muitos filmes e acesso a informação que me dariam fontes de inspiração para uma vida inteira e por isso não foi uma reflexão demorada. Em Abril de 2020 já estava mergulhado na composição deste novo disco. Este trabalho iria servir de filtro para transformar tudo o que de negativo se passasse em algo melodioso e positivo.

Focando-nos na capa do teu álbum que traz cartas na manga. Vais buscar um artista plástico de Arcos de Valdevez, de seu nome Mutes. Dizes-nos que “a pintura que faz capa deste disco (…) mostra uma série de figuras disformes que representam essa imagem subterrânea que pode ser a de cada um de nós”.

© Capa do álbum “Subterrâneos”

Como chega Mutes até ti e como se transforma a arte dele – “Em marcha escarlate” – em capa do teu novo trabalho de originais?
(JM):
Num primeiro contacto, o MUTES partilha comigo um vídeo de um trabalho que tinha criado e que no rádio ao fundo se ouvia uma música d’O GAJO. Ele gostou dessa relação espontânea e mandou-me esse vídeo. Fiquei contente e curioso com o trabalho dele e fui dar uma espreita. Sou designer de formação e normalmente faço as capas dos meus discos, mas desta vez achei que este trabalho exigira novos contributos. Se já tinha no meu barco o Carlos Barretto e o José Salgueiro, achei que devia também trazer a visão do MUTES para o lado mais visual deste projecto. Isto iria enriquecer um projecto que era a solo e dar-lhe novas cores. Ia contrariar o isolamento criando um trabalho a várias mãos. “Em marcha de escarlate” saltou-me à vista pois vi uma série de pessoas disformes que representariam esse nosso “eu” interior, esse “Subterrâneo” que camuflamos para nos relacionarmos uns com os outros.

Porquê o disforme para representar a nossa imagem subterrânea/profunda? É a chamada ao reflexo menos bom que nos falas na apresentação?
(JM):
A minha visão da figura humana é muito disforme. Temos exemplos excepcionas de pessoas que pensam, escrevem, pintam, tocam e se expressam de forma subliminar, construtiva e inspiradora, mas a grande fatia deste “bolo” a que chamamos humanidade, são pessoas de pouca ou muito má índole. Seja o Hitler ou o nosso vizinho do lado. Uns com mais ou menos poder expressam-nos, diariamente, a intolerância mais pura e o egoísmo mais refinado, nas pequenas ações do dia-a-dia. E se analisarmos bem a situação, esse é um movimento crescente. Se a extrema direita cresce na Europa, se o Donald Trump convenceu a América, se a ignorância continua aclamada no Brasil de Bolsonaro, se a China continua a ser uma economia potente fruto de trabalho escravo, se o tráfico de seres humanos é um negócio rentável, se o auto proclamado Estado Islâmico continua a receber seguidores, se a corrupção é uma doença crónica e global, se o autarca recebe a vacina antes do cidadão mais fragilizado, se há crianças deslocadas que não podem crescer e brincar em paz, se o racismo é sistémico, se a produção de materiais nocivos ao meio ambiente é ignorada, se existem paraísos fiscais, etc. Somos na realidade uns parasitas deste Planeta, parte da doença e não da cura.

“Subterrâneos”, um trabalho para descobrir e ouvir, e reouvir a Viola Campaniça em novos cenários sonoros. •

+ O Gajo
© Fotografia: Jorge Buco.

Já recebe a Mutante por e-mail? Subscreva aqui .