Produção, Criatividade, Palcos. Qual o futuro da cena musical? / João Rui

Voz de rouquidão inconfundível, humor que já não vivemos sem quando em palco, músico, compositor e sapiente ouvido nas lides de estúdio de gravação, João Rui (a Jigsaw) não deixou que os estranhos tempos que se viveram e se vivem o parassem ou lhe parassem a criatividade, ou o impedissem de continuar projectos em curso. São tempos diferentes, mas a dedicação à cena musical é a mesma, sem dúvida.

João Rui é figura indissociável dos veteraníssimos a Jigsaw, duo que cada álbum lançado nos surpreende com mais e melhor Folk/ Blues, com composições que conquistam, sempre, do início ao fim (e dos quais ansiamos por novidades). É, também e há muito, junto com outros músicos da cidade de Coimbra, membro da máfia que faz da BLUE HOUSE um estúdio que se tem vindo a afirmar na cena musical. E, como lhe sobra demasiado tempo, é músico que alinha em convites para projectos paralelos aos seus e que, já há uns tempos, nos vem a acicatar sob o pseudónimo John Mercy… Sobre este último já ultimámos João Rui para uma conversa futura. Hoje, pedimos-lhe sem rebuscados ou floreados que fizesse uma reflexão crítica sobre os últimos 12 meses enquanto músico, criativo e mestre de masterizações.

Se te pedisse para escolheres uma nota musical ou frequência hertziana ou um valor em decibéis para resumir estes últimos 12 meses, qual seria e porquê?
(JR):
440Hz porque é a frequência que corresponde à nota Lá que é por onde geralmente se começa a afinar a guitarra. Isto porque tem sido um ano em que tem sido necessário controlar comportamentos e distâncias. Tal como a afinação de qualquer instrumento, basta uma corda desafinada para estragar a festa. Ora e neste ultimo ano tem sido imperativo estar sempre de olho na frequência em que estamos individualmente por respeito à frequência do próximo. Portanto, para ver se saímos todos felizes deste concerto, parece-me que 440Hz será um bom ponto de partida para estarmos todos no mesmo tom.

Houve tranquilidade e disponibilidade – física e mental – para pôr em prática o que anteriormente te era quase impossível, como tirar projectos da gaveta ou reorganizar-te?
(JR):
Não é meu costume deixar projectos na gaveta nem há impossíveis desde que os queiramos realmente realizar. Podem estar demorados, mas não arrumados. E neste sentido, teria que responder que não houve qualquer alteração em termos de disponibilidade física ou mental. Os projectos que tinha em curso mantiveram o seu curso. Alterações que possam ter surgido foi mais trabalho ao nível de mistura e masterização precisamente porque outros músicos tiveram esse acréscimo de tempo para colocar os seus projectos de gaveta em prática. E tudo isto sem contar com o Victor Torpedo que com ou sem pandemia não pára de me enviar álbuns para misturar e já sei que já tem mais terminados para me enviar.

Como encaraste e encaras os concertos em streaming? São de alguma forma um motor para se manter uma certa actividade, te sentires activo?
(JR):
Não os encaro. Acredito que seja um motor para alguma coisa, mas não para um concerto ao vivo. A não ser que se esteja rodeado por uma equipa técnica capaz de assegurar as condições suficientes para ter mais qualidade do que uma videochamada de família, vejo-os mais como uma curiosidade do que outra coisa qualquer. E se quem está a ver esse “concerto” do outro lado o está a ouvir nas colunas de um laptop ou do telemóvel então o baixista nem precisa de ensaiar. É uma curiosidade que acredito que satisfaça muitas pessoas, mas para mim perde-se a essência quando se tenta fazer dele um substituto. Acho preferível esperar para se regressar às salas de concerto porque é no espaço entre o músico e o público que a canção habita – e é precisamente nesse espaço que é diferente de sala para sala e onde se trocam os intervenientes que ocorre a magia dos concertos. São coisas difíceis de conseguir com monitores entre nós.

Estás a desenvolver músicas ou produções para a nova temporada pós-confinamento que se avizinha? Se sim, podes levantar a ponta do véu?
(JR):
Sim e não, porque são músicas que já estão desenvolvidas, criadas e gravadas. Quanto muito, a pandemia atrasou todo esse processo de as levar a público. Há algum material que já esteve calendarizado para estrear mas que foi atrasado, como o meu álbum já com o meu pseudónimo de John Mercy com a Tracy Vandal, outro álbum com o Pedro Renato e trabalhos a solo diversos como a compilação de versões dos Tédio Boys. Eventualmente o novo álbum de a Jigsaw que deverá ver a luz do dia até final do ano. Também há algumas versões dos Parkinsons no âmbito do 20º aniversário que fiz com a Raquel Ralha, o Pedro Antunes e a Bonnie Blossom que deverão ser editados em vinil através da Lux Records – aliás, todo este trabalho será seguramente com o selo da Lux Records do Rui Ferreira. Há uma certa magia de pertencer a uma editora discográfica que se perdeu ao longo dos anos mas é algo que me agrada imenso.

Como se organiza uma agenda com tantas incertezas e reagendamentos constantes? É exequível programar ensaios, concertos e tours a curto e longo prazo?
(JR):
Nesta altura é extremamente complicado fazer qualquer tipo de planos nesse sentido. Não me parece que já estejamos em velocidade cruzeiro para nos podermos organizar dessa forma. Por ora parece-me melhor ligar a aparelhagem e ouvir um disco. É falar com a loja Lucky Lux em Coimbra que é loja de música para atender aos gostos musicais de quem leu até este ponto da conversa.

Sentes que a paragem forçada da cena musical transformou o olhar do público e a mesma passou, finalmente, a ser mais olhada como profissão e não como hobby?
(JR):
Não. A meu ver não se alterou absolutamente nada em relação ao olhar do público. Quanto muito alterou-se o olhar dos músicos sobre si mesmos na compreensão da precariedade da classe. E enquanto os próprios governos olharem para a “cena musical” como um hobby não se irá alterar nada. Repare-se por exemplo que houve uma redução no IVA dos instrumentos musicais. Isto seria uma excelente notícia: a guitarra que outrora estava taxada a 23% agora está a 13% como se fora uma ferramenta de trabalho – contudo, as cordas que eu preciso de adquirir para poder continuar a usar esta ferramenta de trabalho são tratadas de forma diversa e mantém os 23% – o luxo de poder trabalhar. De igual forma, se eu editar o meu álbum é taxado como bem a 23% e se editar o livro com as pautas deste mesmo álbum já é taxado abaixo, com 6%, como se isso fosse realmente outra cultura. O próprio sistema de tributação para as artes em Portugal engloba tudo no mesmo saco e torna-se realmente complicado em muitos casos ter sequer a actividade aberta se a actividade for pouca. A diferença será que agora ainda há mais pessoas nessa situação e o nosso código, precisamente por não atender às especificidades da área, não tem ajudado, tributando-nos de igual forma que outras áreas tão distintas. Ora, enquanto houver este tipo de tratamentos absurdos, vai ser difícil alterar mentalidades do público, se é ainda tão complicado alterar a mentalidade de quem nos governa.
Ressalve-se, no entanto, que a minha resposta escancarada de “Não” é dada em relação ao “público” aqui usado na pergunta com um certo desrespeito ou pelo menos demérito do “povo” de uma forma geral, excluindo também dele uma outra plateia mais esclarecida que será o público alvo desta entrevista. Nessa plateia arriscaria que pelo menos um terço vê e sempre viu a cena musical como uma profissão. Mesmo sendo uma profissão em que as pessoas parecem realizadas com o seu trabalho. Até arriscaria que mais pessoas têm este tipo de perspectiva em relação à cena musical, mas aí teria graves problemas em justificar a percentagem irrisória que a cultura tem no orçamento de estado.

Produção. Criatividade. Palcos. Como é a tua rotina de músico e como vês o futuro do teu sector a partir destas três palavras?
(JR):
O futuro passa pelo passado. Desde os tempos imemoriais já bardos se detinham perante exactamente as mesmas palavras. Sem a criatividade para produzir nova música não se conquistará o palco e ninguém iria ver o bardo cantar na clareira da floresta. Portanto tal como antes, há que continuar a trabalhar e escrever canções e mostra-las ao mundo. Naturalmente que é mais complexo que isto, mas é nesta simplicidade que reside o segredo do sucesso. O sector (e aqui falo apenas da música) está profundamente dependente da excelência da canção. Sem ela, o sector é como um museu sem obras de arte: quatro paredes e um espaço vazio que ninguém quer ver. Portanto o futuro passará sempre por tentar acompanhar a canção até ao ouvinte que esperemos que em última análise saiba apreciar a qualidade que nela pode e deve residir e resistir. Somos um sector de emoções, de sentimentos. Até uma simples viagem de elevador é mais solitária sem essa companhia.

Quão desafiante se tornou este último ano no teu percurso enquanto músico? Como geriste a falta física dos teus pares, ao teu lado? O que mais mudou na tua perspectiva sobre o teu trabalho?
(JR):
A presença física dos pares será porventura o que mais fez falta e que ainda vai durante algum tempo fazer falta. Mais até talvez a constância dessa presença, porque no meu caso tive a sorte de ter a visita no meu estúdio em casa (com todas as distâncias devidas e medidas de protecção), de diversos músicos que vieram gravar em projectos em que estou a trabalhar, tal como a Raquel Ralha, o Pedro Renato, o Pedro Antunes, o Carlos Mendes. O Victor Torpedo passou cá, mas foi para levar um microfone e deixar gravações de outro disco seu, portanto ainda deu para um abraço a três metros de distância. O resto do trabalho teve e tem que ser à distância através da internet. Como já é uma forma a que estou habituado a trabalhar já há diversos anos, isto não veio alterar nada. Talvez ajude o facto de eu realmente gostar de trabalhar sozinho durante o processo criativo e nesse sentido não se alterou nada porque eu já tinha esse espaço de reclusão assim definido. •

+ a Jigsaw
© Fotografia: Nelson Gomes.

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