Produção, Criatividade, Palcos. Qual o futuro da cena musical? / Zedegar Martins

José Martins – ou como todos o tratam, Zedegar Martins – é Técnico de Som. Ponto. Se é algo mais? Por qual razão precisaria ser algo mais? Imagine que é advogado e lhe perguntam: É advogado e que mais?
Não faz sentido, claro. Porque se ainda tem alguma dúvida, garantimos-lhe que ser Técnico de Som é o que salva os seus ouvidos, é o que lhe ajuda a alimentar alma fazendo-lhe chegar os sons de palco na mais perfeita e depurada audição. Ser Técnico de Som é conseguir construir som mesmo nos espaços menos sonoros.

Muito esquecidos pelo público em geral, o Técnico de Som é, como sabe, absolutamente imprescindível aos espectáculos que tanto gosta de ouvir. A sua profissão diríamos que é q.b. de complexa. Tem de saber de som, música, decibéis, acústica, arquitectura, dimensão espacial, programação (software),… e gerir os requisitos mais sensíveis e necessários ao(s) músico(s) em palco e ao público que ouve. Nada lhes deve escapar, nos dois lados da barricada – ou da mesa de mistura, como preferir – ao ouvido de tísico que normalmente têm.

Zedegar Martins tem na algibeira a licenciatura em Som e Imagem. Foi técnico de som residente no Salão Brazil (Coimbra) durante vários anos, passou pelo Centro de Artes de Águeda e fez direcção técnica no Teatro Académico de Gil Vicente (Coimbra), entre outros. Actualmente, exerce as funções de diretor técnico no Teatro Municipal da Covilhã. Ao longo do caminho, paralelamente aos projectos acima, tem vindo a desempenhar o papel de técnico de várias bandas: The Twist Connection, Macadame, The Walks, Birds Are Indie, Animais, e alguns mais. Eis a voz de quem vos dá mais ou menos reverb.

Se te pedisse para escolheres uma nota musical ou frequência hertziana ou um valor em decibéis para resumir estes últimos 12 meses, qual seria e porquê?
(ZM):
Um Dó a 905hz a 120 db, tipo monitor cardíaco a tocar bem alto a exaltar que “esta área está a morrer, alguém que ligue o desfibrilhador”.

Houve tranquilidade e disponibilidade – física e mental – para pôr em prática o que anteriormente te era quase impossível, como tirar projectos da gaveta ou reorganizar-te?
(ZM):
No segundo confinamento isso foi possível, no primeiro a concentração era a de um peixe; querer ler um livro e depois de três paginas ter de voltar atrás por não me lembrar da história. Este segundo, apesar de custar muito mais a passar em grande parte por já sabermos o que nos esperava, já deu para colocar as ideias em dia e redefinir objetivos.

Como encaraste e encaras os concertos em streaming? São de alguma forma um motor para se manter uma certa actividade, te sentires activo?
(ZM):
No meu caso em particular participei em poucos porque, por opção, decidi viver longe (no Alentejo) em relação às bandas com quem trabalho e pela impossibilidade de mobilidade acabei por não participar em tantos como gostaria. De modo geral, consigo entender o propósito e a vontade dos músicos e técnicos se manterem em contacto e no activo, através dos streamings, mas o sentimento não é o mesmo. Falta, quanto mais não seja, a peça-chave que é a presença das pessoas que, no fundo, são parte principal de um espetáculo.

Estás a ser desafiado para produções ou programação para a nova temporada pós-confinamento que se avizinha? Se sim, podes levantar a ponta do véu?
(ZM):
Este pós-confinamento está a ser bastante interessante, pois foram surgindo algumas oportunidades de trabalho e algumas delas bastantes desafiantes como a coordenação técnica do renovado Teatro Municipal da Covilhã, e a colaboração em algumas instalações artísticas sempre com o olhar e pensamento a fugir de um hipotético novo confinamento.

Como se organiza uma agenda com tantas incertezas e reagendamentos constantes? É exequível programar a tua agenda de som a curto e longo prazo?
(ZM):
No início sentia alguma ansiedade em relação a isso. Estávamos todos (músicos, técnicos, produtores, etc) em contacto para tentar programar como seria o nosso futuro; para que data se marcaria aquele concerto que afinal não ia acontecer… mas depois, com o passar do tempo, e para bem da saúde mental, passei a gerir os meus planos e agenda a curto prazo. No máximo de mês a mês, ou até de quinze em quinze dias, a par das conferências de imprensa do Primeiro Ministro António Costa e ver “OK, nestes quinze dias posso trabalhar, nos próximos não”.

Sentes que a paragem forçada da cena musical transformou o olhar do público e a mesma passou, finalmente, a ser mais olhada como profissão e não como hobby?
(ZM):
Não acredito que a opinião do público vá mudar em relação a esta área. Vejo esta pandemia como quando perdemos alguém que nos é muito chegado e em que, nos primeiros tempos, todos vemos a vida de outra forma e dizemos que o mundo vai ser diferente e quase que “belo e amarelo”. Mas no fundo, com o passar do tempo, a vida volta ao normal. Por isso, por tudo o que sempre foi, tenho grandes dúvidas que tão cedo me deixem de perguntar coisas como “és técnico de som, e mais?”.

Produção. Criatividade. Palcos. Como é a tua rotina Técnico de Som e Imagem e como vês o futuro do teu sector a partir destas três palavras?
(ZM):
Ao longo do último ano, a pandemia trouxe não só o mau. Trouxe também muita criação. Senti, por muito que fui acompanhando, que o estado criativo das pessoas esteve em alta. Vi muito a ser criado, muitos projectos a ganhar forma e a passar para o papel. No entanto, o lado de produção propriamente dita e o de sair da gaveta, por todas as vicissitudes inerentes a estes tempos e suas limitações, ficou para trás – o que criou uma sede infindável de palco. Em relação à minha pessoa, retomando à parte inicial da questão, a minha rotina é a falta dela. Não existe. É tudo diferente de espetáculo para espetáculo. A única coisa comum é que é preciso montar, operar e desmontar. De resto, tudo no intermédio disto é diferente de dia para dia – e é isso que traz alguma da beleza a esta área.

Quão desafiante se tornou este último ano no teu percurso enquanto Técnico de Som e Imagem? Como geriste a falta física dos teus pares, ao teu lado? O que mais mudou na tua perspectiva sobre o teu trabalho?
(ZM):
Este último ano foi extremamente desafiante e exigente. Foi o deixar de correr o país de norte a sul, num só fim-de-semana, para percorrer um T1 durante meses a fio. Mas, ao mesmo tempo, serviu para – apesar da distância física – digitalmente reatar amizades e falar com algumas pessoas que normalmente não teria tanta disponibilidade para tal. Profissionalmente, serviu para tirar algumas formações online, aquelas que fisicamente se realizam habitualmente nos principais pólos urbanos do país e que a pandemia veio mostrar que algumas delas até podem funcionar de outras formas ou que, pelo menos, é possível tentar reinventar métodos. •

+ Zedegar Martins
© Fotografia: João Duarte.

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