Serra da Lousã, Aldeias do Xisto, Cerdeira, dia 23 de Julho de 2021, uma sexta-feira, passava um pouco das 18H00 … estávamos preparados/as para ver “O Movimento das Coisas”, e contávamos com a presença da realizadora: Manuela Serra.
Atendo-se à intensa realidade das coisas, que se apreende através, e só, do seu movimento, o filme que Manuela Serra terminou no ano de 1985, mas a fez permanecer cativa durante 36, já que apenas agora, em 2021, saiu do quarto projectivo de uma esperança que se gorou – e é já tarde, apresenta-nos as coisas e o seu desdobramento abstracto subjacente. Sensorial, pictórico, musical, “O Movimento das Coisas” é-o, e mostra, dá a ver, não o idealismo forjado num céu distante, mas a terra quando toca a esfera celeste que a notoriamente envolve. E quando a terra e o céu se tocam acontece, pura e simplesmente, o que vimos durante 88 minutos: uma oração. Trata-se de um filme simbólico até ao osso, respeitoso do princípio ao fim, delicado no ritmo que faz entregar uma pessoa a um fruto, ou uma menina a um cão, ou uma espiga de milho a um canto: como se Manuela Serra filmasse a fonte secreta de onde brota a realidade. Tal fonte secreta não tem epicentro, não é retratada por momento algum que se sobreponha a outro, ou outros, não: dissemina-se, pressente-se e vê-se, de facto. Como se vê o frio no Inverno ou o intenso calor no Verão: através do ar. Portanto, “O Movimento das Coisas” é um filme onde se pode ver a respiração: seja a das pessoas, seja a dos animais, seja a das plantas.
Que começa no amanhecer, ou seja, na transição, que é regulado pelo sino em cuja torre da igreja em que permanece se destaca, que continua numa mesa onde se dispõe a refeição, que durante muito tempo se atém às mulheres, apenas. Que termina no entardecer, ou seja, na transição, que é dominado pela chaminé da fábrica cuja paisagem devora. Pelo meio, um rio: que corre o mesmo, e sempre diferente. Trata-se, como já se viu, do ocaso de um mundo rural, sim, para dar lugar à modernidade da indústria, cujas enfermidades inerentes passam a toda a velocidade e estridência em circunstâncias de “O Movimento das Coisas” – as motos, os carros, as carrinhas, o betão; mas trata-se, e muito, creio, do sacrifício do mundo das mulheres, logo, de valores femininos não alinhados com o tempo do relógio, embora este precise da força de trabalho que provém das suas mãos, como o filme também o prova. E aqui a visão de Manuela Serra é de grande lucidez: em todo o lugar, e em qualquer tempo, homens e mulheres cooperam, e, em “O Movimento das Coisas”, essencialmente sem cobiça. Pese embora, deveria talvez considerar-se uma espécie de aviso o desencontro que, logo naquela que será também uma das múltiplas entradas deste filme, se marca: na estrada, mulher e homem caminham em direcções opostas, como se fossem também pêndulos. Assim, este é um filme que foca diferentes faces do tempo: o do sino, o das mulheres e do seu canto, o dos homens e das máquinas, o do relógio, o da ressurreição e o da comunhão. Como nos apresenta a intensa realidade das coisas de forma simultânea, numa espécie de malha existencial coesa, e com delicadeza ímpar, “O Movimento das Coisas” parece dizer-nos, apesar da forma como termina agora, que, sim: é possível.