A 8.ª edição do Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival leva ao público lisboeta, esta semana de 10 a 14 de novembro, no Cinema São Jorge, 45 filmes (curtas e longas-metragens), a maioria dos quais em estreia nacional e cinco em estreia mundial. Um festival que vai encher de bom cinema a cidade de Lisboa e que não vai querer perder.
A presença portuguesa destaca-se com a première absoluta da longa-metragem documental Elas Também Estiveram Lá, que marca a estreia de Joana Craveiro – actriz, dramaturga, encenadora e artista de performance – como realizadora cinematográfica. A película, baseada no espectáculo teatral homónimo, dá vida às histórias invisíveis de várias mulheres que fizeram parte da resistência à ditadura e da revolução de 1974-1975, mas foram apagadas pela historiografia oficial.
Além desta longa-metragem, com sete curtas em concurso, as realizadoras portuguesas marcam presença em todas as secções do Festival: O Ofício da Ilusão, de Cláudia Varejão, A Raíz da Margem, de Sílvia Coelho e Paulo Raposo, Poéticas do Canto Polifónico, de Maria do Rosário Pestana, e A Menina Parada, de Joana Toste, são apresentados na Competição Geral; Nha Mila, de Denise Fernandes, e Flor de Estufa, de Laís Andrade, entram na secção especial Travessia, sendo que o filme Flor de Estufa compete também na secção Começar a Olhar e é acompanhado por audiodescrição. Todas as obras portuguesas serão apresentadas em sala pelas suas realizadoras, celebrando o regresso às salas de cinema e à possibilidade de conversar descontraidamente com o público.
Este ano, mais do que nunca, a programação do Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival caracteriza-se por apresentar uma variedade de filmes cujas protagonistas são mulheres que questionam e desafiam à realidade à sua volta, sem ficar quietas no lugar que a sociedade ou a contingência lhes quiseram definir. No documentário Suspended Wives (co-produção Marrocos, França e Qatar) – outra longa-metragem em estreia mundial – a realizadora Merieme Addou conta a história de três mulheres marroquinas, Ghita, Latifa e Saadia, que procuram a sua liberdade através de duros e longos processo de divórcio dificultados por leis iníquas. Na longa-metragem de ficção israelita Working Woman, de Michal Aviad, Orna, uma mulher jovem e talentosa, encontra a força de enfrentar a escolha impossível entre sustentar a família ou recusar o assédio sexual do patrão. Forte e rebelde é também Walaa, a protagonista da curta-metragem Tuk Tuk, de Mohamed Kheidr (Egipto), que para garantir a sobrevivência da família começa a conduzir um tuk tuk, num ambiente dominado pelos homens.
A destacar, ainda, dois documentários sobre duas artistas performativas, cujos corpos se transformam em obras de arte que desafiam o patriarcado, e entre as quais podemos tecer um imaginário diálogo de desafios e sororidade. A longa-metragem Esther Ferrer. Threads of Time, de Josu Rekalde (Espanha), dá-nos a conhecer Esther Ferrer, artista espanhola nascida em 1937 que, com imparável energia, desde os anos 70 cria obras e performances relacionadas com o tempo, o corpo que se transforma e envelhece, e a desigualdade de género. Kubra, de Mélanie Trugeon (França), é, por sua vez, uma curta-metragem sobre Kubra Khademi, jovem artista plástica e performer afegã refugiada em Paris, que explora através do seu corpo a sua própria história e as barreiras que as diversas sociedades continuamente levantam.
Nesta edição do Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival não faltam, porém, narrativas mais íntimas, como as curtas-metragens The Bath, de Anissa Daoud (Tunísia, França), sobre sobre traumas de infâncias escondidos; Brother and Sister, de Coralie Lavergne (França), sobre laços familiares complicados; e In the Woods, de Sara Grgurić (Croácia), história de um amor no fim da linha. Ferry Tale, de Michal Shanny e Quan Nguyen Hong (Roménia), Mosaic, das irmãs turcas Imge e Sine Özbilge (produção belga), e Heurtebise, de Elisa Torres e Octavio Guerra (Espanha) oferecem momentos de pura poesia; e The End of Suffering (A Proposal), da grega Jacqueline Lentzou, proporciona instantes de delírio jocoso, numa estranha viagem a Marte.
A programação do Festival é feita também de histórias de fronteiras, reais e simbólicas, e de prisões, com ou sem grades. No documentário First Year Out, da francesa Valérie Manns, acompanhamos três ex reclusos no difícil processo de adaptação à vida em liberdade; enquanto em Sugar Cage, de Zeina Alqahwaji (co-produção Síria, Líbano, Egipto), vivemos a vida parada e claustrofóbica, mas ainda cheia de ternura, dos pais idosos da realizadora, na sua casa em Damasco, ao longo de oito anos, durante a guerra na Síria. Em Shakira, curta-metragem de ficção de Noémie Merlant (França), a homónima protagonista, uma jovem cigana a viver em Paris, deve lidar com fronteiras invisíveis, mas não por isso menos altas que as barreiras de betão, e na curta-metragem Uranus, a palestiniana Aya Ahmed Matrabie, documenta a sua tentativa de fugir da grande prisão a céu aberto que é a Faixa de Gaza, apontando um telescópio para a noite estrelada
Em 2021, não podiam faltar filmes sobre o confinamento. Escolhemos então contar o confinamento visto pelos olhos dos adolescentes e filmado pelos seus telemóveis, na média-metragem Teenage Lockdown Tale. Este documentário é o resultado extraordinário do trabalho feito por Marie Pierre Jaury e Charlotte Ballet-Baz (que estará presente no Cinema São Jorge) com três alunas e dois alunos de uma escola francesa. Um filme comoventemente sincero e delicado, que mostra sem filtros, e porém sem voyeurismo, o que significa para um adolescente viver confinado, num momento irrepetível da construção da sua identidade e autonomia. Um filme íntimo que sabe também revelar, em filigrana, o peso das condições de classe, sociais e familiares na experiência de viver confinados aos 15 anos.
E 2021 é também o ano de uma reforçada colaboração com outros festivais. Assim, programamos três curtas-metragens de ficção premiadas na 4ª edição do Beirut International Women Film Festival (BIWFF): Amygdala, de Dana Abdessamad, e A Day Off, de Leonardo Bassil, filmes vencedores, respectivamente, de uma menção honrosa e do prémio como melhor curta-metragem libanesa, e The Present, de Farah Nabulsi (co-produção Palestina, Emirados Árabes Unidos), que, para além de ganhar o prémio de melhor curta-metragem no BIWFF, foi galardoado no BAFTA 2021 e está nomeado para os Óscares.
O filme de abertura, a 10 de novembro, é também fruto da criação de laços entre festivais. Numa sessão conjunta com a Festa do Cinema Italiano, exibimos As Irmãs Macaluso, de Emma Dante, galardoado com vários prémios na 77.ª edição do Festival de Cinema de Veneza. Um filme sobre uma família feita só de filhas, cinco irmãs que vivem juntas num apartamento devoluto, em frente ao mar, cheio de pombas que alugam para cerimónias, lembranças difíceis e laços indestrutíveis. Na sessão de encerramento, a 14 de novembro, é apresentado Holy Boom, de Maria Lafi. Nesta ficção co-produzida por Grécia, Albânia e Chipre, na véspera da Páscoa ortodoxa, em Atenas, uma explosão acidental liga as histórias de quatro desconhecidos que tentam sobreviver à margem da legalidade, convergindo num final que não sendo feliz, não fecha a porta à esperança.
Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival apresenta quatro secções competitivas (Competição Geral Longas, Competição Geral Curtas, Competição Travessias, Competição Começar a Olhar) e uma série de actividades paralelas. A 10 de novembro, a seguir à exibição de Suspended Wives, decorre a mesa redonda “Género e Família em Contextos Árabes” com Antónia Pedroso de Lima (OM, CRIA/ISCTE-IUL), Raquel Gil Carvalheira (Azimute, CRIA/NOVA-FCSH) e Nadia Bentahar (ICLP e CLI-Faculdade de Letras). A 11 de novembro, Sam Lahoud, docente de cinema e director do Beirut Women Film Festival, apresenta a masterclass “Creative Storytelling in the Modern Era” sobre os desafios e problemáticas de contar histórias na era digital.
Sábado, 13 de novembro, pela manhã, Rodrigo Lacerda (CRIA/NOVA-FCSH) dinamiza um workshop para professores sobre o uso do cinema como instrumento para melhorar a percepção do “outro” nos alunos do ensino secundário. Durante a tarde, a seguir à exibição dos filmes Uranus, The Present, Shakira e Tuk Tuk, decorre a mesa redonda Travessias subordinada ao tema “Fronteiras Geográficas, Legais e Simbólicas: Limites Visíveis e Invisíveis”. No domingo, 14 de novembro, à tarde, o filme Elas Também Estiveram Lá dá o mote para uma mesa redonda sobre “As mulheres na Resistência e nas Revoluções”, com a realizadora Joana Craveiro, Manuela Tavares da UMAR e Clara Jorge, uma filha da clandestinidade.
Domingo é também o dia dedicado aos mais pequenos. Pela manhã, pais e filhos (dos 4 aos 7 anos) podem participar no atelier de cinema “Olhares em Pequenino – Desenhos Parados, Desenhos Agitados”, e durante a tarde deliciar-se com uma sessão de curtas-metragens de animação que incluem A Menina Parada, de Joana Toste, Souvenir, de F. Orgeas, A. Douroudakis, T. Inoue, S. Khot, Ya Ching Liu e V. Richard (França), e as espanholas Siren’s Tail, de Alba Barbé i Serra, Me, a Monster?, de Belinda Bonan, e The Ducks, de Ángela Arregui Chavarría.
Olhares do Mediterrâneo – Women Film Festival é o primeiro e mais antigo festival de cinema no feminino em Portugal, e é o único dedicado à cinematografia da bacia do Mediterrâneo. O Festival é um projecto do grupo Olhares do Mediterrâneo e do CRIA (Centro em Rede de Investigação em Antropologia).
A tomar nota de tudo. A não perder uma passagem deste festival obrigatório. •