Kazimir Malevitch, na vanguarda da Europa vinda do oriente, legou-nos um “Quadrado negro sobre fundo branco” que é um retrato acabado da, mais pura, lei do desejo que nos assiste.
Não há arte pela arte. Pode ser bastante duvidoso escrevê-lo por baixo de “Quadrado negro sobre fundo branco”, de Kazimir Malevitch, mas repito: não há arte pela arte. A concepção de uma “arte pela arte” dá muito jeito a quem especula com obras de arte, a quem manobra as obras de arte para camuflar negócios, a quem compra obras de arte para estimular o mercado, a quem amealha obras de arte no depósito para intervir nos preços e valores. Mas a arte, as obras de arte, e nunca será demais escrevê-lo, é/são uma infinita promessa, como aliás cada um/a de nós. Foi preciso o cinismo e a incúria atingirem um grau de sofisticação tal, de modo a desmobilizarem o(s) horizonte(s) de esperança, palavra esta, aliás, que já quase apenas se profere em ambiente religioso, ou em encarnações de âmbito religioso que, curiosamente, também se conectam amiúde com o pardo ambiente mais ou menos descrente, e cínico.
Talvez seja aqui importante lembrar John Berger, um atento narrador do mundo contemporâneo, desaparecido em 2017, quando distingue dois tipos de julgamento patentes entre os séculos XIX e XX, no horizonte de uma centralidade e problematização da imagem. Assim, e durante o século XIX, com a secularização do mundo capitalista apaga-se o julgamento de Deus para que o da História entre em cena, em nome do progresso; neste entorno, democracia e ciência tornam-se os agentes desse julgamento, e a fotografia apresenta-se eticamente como verdadeira. Mas na segunda metade do século XX, como acentua, o julgamento da História é abandonado por toda a gente, com excepção para os desprivilegiados e os despossuídos, ou seja, todas as pessoas que ainda aguardam a redenção, para o colocar nos termos de Walter Benjamin. Tudo, como nos transmite, se transforma em espectáculo: natureza, história, sofrimento, outras pessoas, catástrofes, desporto, sexo, política, e com um locus – a câmara. Mas nunca será demais escrevê-lo: a arte, as obras de arte, contam histórias, e são tanto gritos, como lastros e sonoridades que persistem nos nossos ouvidos, e impelem. Temos, porque é óbvio, uma dívida para com todas as pessoas desprivilegiadas e despossuídas, e porque há algo de extremamente vulnerável em nós, e porque sofremos, por elas, e pelo que de indefeso há em nós.
Todo o/a artista dos dias de hoje deveria sabê-lo. A especulação com obras de arte, a manobra de obras de arte para camuflar negócios, a compra de obras de arte para estimular o mercado, o amealhar de obras de arte no depósito para intervir nos preços e valores, não podem ser os fins últimos. A arte proporciona dignidade, e formas de subjectivação: delas não nos podemos demitir. E porque se ausentou tanto deste espectro uma ideia de corpo? Por que razão se destaca a imanência masturbatória ao invés do(s) encontro(s)? A tónica na “arte pela arte” fez do passado uma espécie de montra de horrores, em que os artistas, especialmente homens, supostamente se compraziam na cópia ostensiva do real, vendendo miragens, e colocando-se à disposição dos festins sociais. Basta, na verdade, recuperar algumas palavras de Kazimir Malevitch: “a pintura era o lado estético do objecto, mas nunca foi original, nunca teve um objectivo próprio. Os pintores foram magistrados, graduados da polícia que elaboravam diferentes actas sobre produtos deteriorados, roubos, assassinatos e vagabundos”; ou ainda, “os pintores foram também advogados, alegres contadores de anedotas, psicólogos, botânicos, zoólogos, arqueólogos, engenheiros, mas não havia pintores criativos.” Malevitch apenas se esqueceu de escrever que também foram “médicos”.
E aqui estamos: na absolutização do “vazio”. O/a artista, hoje, é “nada”, e o futuro da obra de arte é ser absorvida pelos negociantes. No entanto, quer-me parecer que no meio deste cinismo e incúria, encarnados por tantas personagens de um filme de série duvidosa, sabe-se, algures, que existe algo de profundamente errado com a arte nos dias correntes. Porque a arte deve emocionar, claro que sim, e impelir. Que jogo é esse que fez com que as obras de arte se tornassem espécies de cromos para a troca?