Ser visitado/a por uma pintura de William Turner, hoje, é efectivamente um privilégio assinalável; se conseguirmos passear-nos dentro dela o estímulo é bem mais significativo.
E Turner é um romântico. E Turner anuncia o modernismo. Pela primeira categorização deixamos Turner mais ou menos arrumado em termos históricos. Pela segunda asserção liquidificamos Turner, já que o perfilamos num sistema de ultrapassagem contínua. Uma obra de arte exige que paremos. Ainda que depois possamos avançar com outro alento, que possamos sorrir interiormente, que possamos sentir um impulso irreprimível…uma obra de arte exige que paremos. E não existem regras sobre o tempo exacto dessa paragem, até porque uma obra de arte opera no âmbito da intensidade e da duração. Uma obra de arte é seta fendida. Por muito que possamos evoluir no âmbito de conhecimento, uma obra de arte encerra sempre um mistério, porque dá a ver o invisível que se aloja no visível, aliás, que apenas o visível revela. Uma significativa parte da desorientação actual precisamente radica na desagregação e diluição da obra de arte.
Existe um excesso de realismo na época. E tal excesso de realismo é compensado pela acoplação de espíritos postiços. Mas a arte, qualquer obra de arte, sempre foi uma espécie de farpa cravada no real, que o abre, portanto, contribuindo, por tal, para criar mais realidade, mais real. É preciso ser-se um cepo para não perceber que no visível se aloja um invisível latente. E que esse invisível, latente, se oferece como um bom cálice de vinho, quente e encorpado, que embriaga tanto, que faz o olhar dançar de doido. A desagregação e diluição da obra de arte não corresponde propriamente a um estado que se reporte a um passado de solidez e verdade, mas antes a uma anestesia do mundo actual. A obra de arte exige cerimónia: visitar um museu, mergulhar num templo religioso, atravessar uma praça, criar um relicário em casa, não têm de ser experiências necessariamente lúdicas, nem atractivas. O que não significa que não se conviva com as obras de arte. Uma obra de arte não é “tu cá, tu lá”, não é, nem é: “olha lá, tu aí”. Uma obra de arte interpõe uma distância, ainda que para cimentar a proximidade: o que não é antagónico.
Mas existe também um excesso de simbolismo na época. E tal excesso de simbolismo é defendido como a marca futurada deste tempo em que só falta conhecer o próximo segredo, só o próximo. Este simbolismo, paradoxalmente, prescindiu dos símbolos, para adoptar apenas, como dizer, os operadores considerados derradeiros. Por exemplo: a palavra Sol já não aquece, porque é apenas hélio e hidrogénio, basicamente, e já não aquece nem na poesia, pois Sol aqui, geralmente, não rima com nada. Aliás, até se providencia, o mais das vezes, para que o Sol venha com a sua semântica adulterada, de forma que possa chocar o bastante. Portanto, o simbolismo acaba por ser reduzido, na verdade, a um realismo de outra espécie porque, lá está, esta é a época do que se vê, tão só e apenas, e não do que se sente. Assim, o Sol não aquece, os Olhos não choram, o Coração não ama, os Pés não têm asas. É uma época em que pode acontecer tudo, menos, incrível, o que de facto acontece.
Os céus que Turner nos legou são inesquecíveis, e não são apenas românticos: podem ver-se agora, amanhã. É isto que as obras de arte fazem.