Nasceu no ano de 1930 e partiu agora, em 2022, mas fica nas sombras, nas flores, nos semblantes, no amplo quotidiano.
No ano de 2013 “Lourdes Castro” veio ter comigo através de Sombras projectadas de Lourdes Castro e René Bertholo, provindas dos anos sessenta do século XX, quando numa rua de Paris, numa casa pequena onde habitavam, esta admirável caçadora de imagens imortalizou o casal. Era 1964. Se escrever História é dar aos anos a sua fisionomia, como o quis Walter Benjamin, e em que tal acredito também, então todas nós, sem indistinção, colhemos o que nos está de alguma forma prometido mesmo antes de nascermos. E continuaremos a interceder pelos vivos mesmo depois de morrermos, porque deixamos uma espécie de carreiro que efervesce o tempo. Todo o cronómetro tem como intenção prender o tempo que escorre, lapidar, emprestando-lhe esse tic-tac até um pouco musical, mas que, ao fim de algum “tempo”, ou melhor, que depois de medido se oferece como ritmo incansável, imparável, como se o cronómetro fosse um olho sempre aberto: não dorme, não descansa. Pois, para mim, Lourdes Castro foi, em vida, e essa visão guardo-a, uma espécie de bonequinha com que as crianças brincam, daquelas cujos olhos abrem e fecham, muito pestanudas: se deitadas, os olhos encerram-se, se verticais, os olhos abrem e fitam-nos com grande claridade. Quem, se não fosse uma bonequinha doce, poderia ter-nos dado/legado uma visão tão delicada?
Lourdes Castro faz-me, também, acreditar na arte, e, num aspecto de não somenos importância: acreditar na obra de arte. Choca-me, sim, a forma como desde há tempo a esta parte se passa pela obra de arte como se se atirasse uma beata para o chão. E digam o que quiserem: mas uma flor é uma flor, e um urinol é um urinol. Quem diz sangue a um bebé? Emmanuel Levinas afirmou que o rosto do outro sintetiza um mandamento: “Não matarás.” Se nos lembrarmos de um facto simples, ou seja, de que a arte moderna concebeu todo um mundo que nos olha, podemos também, sim, concluir que as “coisas” todas nos dizem: “Não matarás.” “Não matarás”: este é o lema que as obras de arte de Lourdes Castro nos trazem. E não matar, aqui, traz várias consequências: fecharás as portas cuidadosamente, cuidarás do jardim, amarás o corpo e o espírito do teu amante, terás uma palavra de conforto para com o teu semelhante, tocarás o ar.
Ninguém disse que é fácil.