Remedios Varo, nascida em Espanha mas que rumou ao México para fugir ao ambiente, e efectividade, da guerra na Europa durante o século XX: pela segunda vez.
As coisas não se mostram unicamente por si, por dois motivos fulcrais: porque se encastram num tecido, logo, estabelecem relações com outras que as vêm afectar; porque existe um pressuposto de movimento que subjaz ao visível, mesmo se tudo parece quieto, pois, então, se trata de uma certa qualidade de potencial implosão, por exemplo, através da passagem de uma aragem. Nesta circunstância, o visível comporta uma intrínseca instabilidade, como se o atravessasse, também e por exemplo, aquele resíduo aéreo que a chama de uma vela a arder proporciona. Se começo desta forma para vos falar agora de Remedios Varo é porque, de facto, a obra de arte se responsabiliza por nos propiciar ampla finura de percepção que, não se circunscrevendo a essa porosidade, vem depois inscrever-se no carácter. Esta pintora, para mais, é surrealista. E quem mais do que o surrealismo nos serviu, a quente e a frio, as personagens mais loucas, as cenas mais improváveis, as fantasias mais delirantes, a metafísica imagética mais concreta? Ao ponto de se ter perpetuado a expressão: “isto é surreal!”, para algo que nitidamente extravasa as juntas da normalidade.
Remedios Varo foi/é uma pintora brava, fértil em imaginário, rica em formas que não nos enganam: testemunham uma mão febril e um coração todo esburacado, em que cada buraco corresponde à caverna mais mistérica e de onde brotam símbolos atrás de símbolos, mortos e vivos. Diz-se que os homens, surrealistas ou não, não respeitavam assim tanto as mulheres que criavam: e Remedios Varo teve amores-amantes; mas nenhum foi capaz de lhe cortar a mão da cabeça. Aí estão as suas pinturas, que provam, as suas pinturas, de cima a baixo, que as mulheres não são o segundo sexo, mas que o têm no sítio certo. As mulheres não são o segundo sexo, até porque, veja-se: quando conhecemos alguém, como cumprimentamos tendencialmente? Com as mãos e com os braços, e falamos com a boca: é assim que procedemos tendencial, e surrealmente.
Por aqui se pode antever que também Remedios Varo teve o seu trauma, que entendo corresponder àquilo que apelido de experiência pré-filosófica – a guerra, a complacência masculina; mas soube vertê-lo para a construção de todo um mundo aspersor, transmutando. Aquele olho que nos fita, todo ele cheio de cataratas, cheio de costuras, de cicatrizes, é também a ferida que a experiência crava no coração e que, com paciência, calma, método, se apazigua em formas visíveis. O segredo, realmente o verdadeiro segredo das nossas vidas, como a ele se refere Cristina Campo, até nem será o sofrimento: mas sim o infortúnio. No dia-a-dia não é preciso ser Remedios Varo para resistir ao infortúnio, ou seja, não é concebível uma sociedade de “remedios varo” replicadas, com apenas pessoas que pintam; mas é possível recolher o seu testemunho. Além do seu testemunho, outros: os dos gestos mais surreais que possam imaginar-se. Por exemplo: um sem-abrigo que te põe a mão no braço e pergunta o que tens, e se lhe respondes que nada te pergunte pois nada lhe conseguias explicar, ele permanece ao teu lado enquanto choras, vigiando, velando por ti, como um anjo da guarda.
Talvez o maior desafio civilizacional que temos pela frente seja, de facto, transmutar o infortúnio em delicadas flores, olhando as feridas como experiências pré-filosóficas de constituição, essencialmente, metafísica.