No dia 11 de Novembro de 2021, Andrea Inocêncio defendeu a sua tese de doutoramento em Arte Contemporânea, desenvolvida no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra.
Intitulada Silêncio – a procura do avesso do espaço urbano (ou do avesso de mim), a investigação de Andrea Inocêncio foi o culminar de alguns anos em busca de um silêncio essencial, primordial, num estado de franqueza e de honestidade que se apresentam como modelares para a actualidade que presenciamos: fluída, deslizante, líquida. Partindo de um descontentamento, e infelicidade aí incubada, com a arte e o sistema da arte tal como com ele embatemos, hoje, Andrea, artista e tudo, deambulou por serras, mergulhou nos oceanos, emergiu dentro dela, própria, perplexa, dolorida, expectante, em busca de um modo de vida, outro. Algumas pessoas podem pensar que se tratou de uma “crise de meia-idade”. Mas: alguém sabe onde está o meio da nossa idade? Rob Riemen, em Nobreza de Espírito, também se socorre de pensamento intrigante: para que se entenda realmente como funciona este mundo, temos de morrer uma vez, então, o melhor é morrer cedo, para poder recomeçar tudo, de novo.
E são vários os sinais que nos exigem abrandar, na arte como na vida: o cinismo, a mercantilização, o kitsch, a fealdade, o ódio, a desarmonia, a injustiça, a falta de oportunidades, a fama, o desinteresse, a indiferença. Para mim, Andrea representa também a “nobreza de espírito”, heroína mais ou menos incógnita da arte, e da vida. O respeito que lhe voto, pela posição existencial, pela incansável busca por uma imagem justa e comovente, pelas ciladas que foi recusando, vem à frente, seguindo-se-lhe uma admiração inegociável. Andrea Inocêncio visitou a Bienal de Veneza numa das suas ocorrências, e não se emocionou. Sim, porque se trata de encanto, de reencantamento: na arte, no silêncio, e mais, e tudo. Nada se constrói destruindo, nada. E existem compromissos interiores, protocolos de experiência, que extravasam a arte, estritamente, e que atingem o coração da vida, e trazem associados, arrastados, os efeitos passíveis de tocar outros seres humanos. Por exemplo, são vários os projectos encetados por Andrea que implicaram directamente algumas pessoas num processo criativo partilhado: e esta é uma forma da arte fazer sentido, não é a única, exclusiva, mas é uma forma, sim.
A arte é sempre feita num tempo, sempre, e ainda que exista uma espécie de cursor invisível que vai estabelecer uma analogia frutífera entre as mãos desenhadas nas cavernas e os sopros surrealistas, por exemplo, a arte está costurada nas pregas de um tempo específico. E a arte está no domínio essencialmente metafórico. Certa vez uma pessoa transmitiu-me o seu desencanto com uma Bienal de Veneza, onde tinha visto, por exemplo, um carrinho de bebé cheio de lixo, perguntando-me: aquilo é arte? Respondi-lhe que, estando enquadrado pela Bienal de Veneza, e guiando-nos pelo aferidor do “mundo da arte”, uma tese institucional, sim: estaria categorizado como arte, porque tinha sido aceite como tal. A questão é outra, e bifurca-se: por um lado, tratava-se de uma metáfora pobre, ou melhor, facilmente resolúvel, pouco instigante; por outro, o ready-made é ready-made, muito bem, mas do outro lado não é garantido que vá ter como receptor um pronto-a-ver, com o olhar essencialmente triturado. Andrea Inocêncio recusa o pronto-a-vestir imaginário, como lhe chama justamente Marc Augé, buscando acreditar nos olhos, nos seus e nos do Mundo, pois sabe que apenas assim pode chegar a uma imagem justa, que emociona.