Venho dizendo desde há muito que encerrar a arte em orquestrações, impedindo-a de libertar as forças e as energias que a obra, na sua espera quase desesperada, sintetiza, é um erro e em nada nos poderá ajudar.
Certamente que um/a artista possui um “sistema” próprio, com as suas influências, mestres, idiossincrasias, obsessões, imagens, coisas que ama e que odeia, alimentos que prefere a outros que repudia; certamente que poderá afigurar-se uma catástrofe, ou pelo menos desajustado, o facto de quem “vê” a obra do/a artista divorciar-se magnificamente das influências, dos mestres, das idiossincrasias, das obsessões, das imagens, que compõem o “sistema” próprio do/a artista; mas a obra de arte continua a poder fazer alguma coisa, para lá dos planos estritos da arte, mesmo, tanto como dos que a aparentemente faz derramar na sociedade, seja pela porta da reivindicação, seja pela janela da política mais lata. Por planos estritos da arte refiro-me à arte entendida como campo, naquele sentido que lhe dá Pierre Bourdieu: e assim vemos as obras de arte eclipsadas pelos movimentos, pela função-artista, pelo tempo contado em décadas, pelas especificidades todas que uma orquestração, porque se trata sempre de algo que se instala como orquestração, assimila. Por aquilo que faz derramar a obra na sociedade entendo, o que hoje se patenteia sobejamente, que sejam os gritos todos dos sujeitos sujeitados numa História de logocentrismo sem margens, conhecidos, esses sujeitos sujeitados, como as minorias que todas as representações recalcaram.
Todavia, a obra de arte pode fazer algo, simultaneamente menor e maior: menor como propósito visível – sem aparentemente se comprometer com o campo, logo, sem ficar adstrita; maior como arquejo pneumático – vindo como respiração própria do sujeito e, por inerência, como ar de Mundo. Julgo que demonstrar este desígnio da obra de arte é urgente: tanto para que a arte não fique presa nas mãos do mercado, onde se amortece a sua aura; tanto para que a obra de arte liberte a sua explosividade intrínseca e vogue, passando entre nós como vento. Existe, por isso, uma velocidade e um abrandamento inerentes à obra de arte: que passa de rajada à frente dos nossos olhos; que se instala no nosso interior. Por isso a obra de arte é subversiva: é no mesmo movimento em que parece escapar, que congrega. Diria que a obra de arte, que não fala, que não abraça, que não sussurra palavras ao ouvido, que não transmite uma palavra de alento, porque não tem boca, porque não tem braços, pese embora, prepara uma espécie de terreno propício a que tudo isso aconteça: que se diga, que se abrace, que se sussurre, que se dê alento. Toda e qualquer pessoa que pense genuinamente sobre arte, e que sinta a obra de arte na pele, em dado momento da vida envereda por estes caminhos: os que acentuam e mostram a intensa humanidade que a obra de arte abre à sua frente como alo e como caminho passível de ser percorrido. E para isso não é preciso que a obra tenha uma coisa escrita a dizer: “eu mostro a intensa humanidade”; não, é outra coisa. E no enlace que a obra de arte proporciona, na verdade, o/a artista, o/a autor/a, não sai, não é escorraçado/a, não é desvalorizado/a, mas antes comparece nesta subversão: artista, autor/a, eu, tu, nós, estamos implicado/as. E de repente o que se derrama é: uma constelação de seres humanos.
Uma obra de arte, portanto, pode ser uma “Pérola” como a de Rui, Chafes.