A Crítica como pregação

Giotto di Bondone viveu entre os séculos XIII e XIV, legando-nos uma obra atenta e multiforme onde teve lugar a pintura, com nome, de “São Francisco pregando aos Pássaros”, hoje aqui presente.

Jean Genet escreveu que uma obra de arte é feita para o povo dos mortos; Maurice Merleau-Ponty cria que as obras de arte têm todo o tempo à sua frente; os gregos viam o tempo para trás, mas nós, modernos-contemporâneos, em queda vertiginosa agora face à voragem do crescimento atroz onde só falta trazermos sempre a pá com que cavamos o buraco na terra, sempre o vimos para a frente. Para mim, a obra de arte fende o tempo, para trás e para a frente, para cima e para baixo: assim na Terra, como no Céu. O que se passa é que hoje tudo se subsume na planície extensa do actual, equivalendo-se sem a vigilância de uma hierarquia de valores ou de uma escala, pelo menos: o tempo visto para a frente tornou-se numa precipitação afanada. A arte, já o escrevi e se escreveu, obriga a parar, o que afigura letal agora. Parar é uma atitude de sério risco na actualidade, por vários motivos, entre os quais, no limite, o de pagar o gesto com a própria vida ou, numa versão menos drástica ainda que dolorosa, com a loucura.
Na planície extensa do actual existe um critério, um único: qual é a última coisa, leia-se obra de arte, a que apareceu hoje, sobre a qual devemos escrever, e ver? Este raciocínio aplica-se também à verdade, que não é tomada como horizonte ético, mas antes como acordo parcial temporário, ou seja, a última verdade possível que se negociou. Enquanto isso, tudo se dispõe para considerar a arte do passado como histórica, sem poder, ou pelo menos revelando para tal graves dificuldades, irromper no presente como lanterna dirigida que ilumine uma zona, que venha derramar, assim, com as suas imagens, uma estranheza. Essa estranheza bem poderia ser um móbil de indagação, individual e colectiva, exigindo que se fizessem perguntas simples. Georges Didi-Huberman fá-lo: mas não é o paradigma que nos circunda. O paradigma é: para quando? Para ontem. E hoje, o ontem? Já não interessa, porque passou. De forma que precisaríamos de um relicário de obras de arte do passado, transportável e sempre à
mão; poderiam ser miniaturas, um pouco à semelhança do que Marcel Duchamp fez para si, com as Boîte-en-valise. A era da reprodutibilidade técnica possibilita-o.
De forma que a crítica poderá surgir neste entorno como pregação.

© Imagem: Giotto di Bondone, “São Francisco pregando aos Pássaros”, DR.

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