Van Gogh, mais uma vez

“Os Comedores de Batata” provém do ano 1885, tratando-se de um quadro a óleo e que se abriga no Museu Van Gogh, em Amsterdão.

Vincent Van Gogh foi um pintor extremista no seu gesto criador, com grande probabilidade sofredor na qualidade de ser humano, para alguns uma pessoa que padeceu de um transtorno psíquico. Qualquer circunstância da sua vida deverá sempre ser confrontada com a obra pictórica que construiu. Nascido em 1853, “Os Comedores de Batata” surgem nos seus 32 anos. O que se pode dizer hoje sobre este quadro tão lúgubre e forte? Tudo e nada. A pobreza é uma condição dura e acre: sob ela a nossa força anímica verga. E hoje, na verdade, quase tudo se encena no sentido de esconder – não relatando, de falsear – através de estatísticas, de ludibriar – recorrendo a políticas de apoio social, a pobreza. No entanto, como para tudo, existe uma duplicidade ou um desdobramento, do que significa ser pobre. Assim, se do ponto de vista existencial e da vida de todos os dias a pobreza é um flagelo, no que se remete à indigência da sensibilidade a pobreza avulta como embrutecimento; todavia, e se resgatarmos uma condição de despojamento interior e de simplicidade, a pobreza aparece enquanto condição de boa vida, de ausência de tralha, tralha esta que apenas nos remete para um caótico mundo de sensações.  

Vincent Van Gogh legou-nos testemunhos preciosos, quer da sensibilidade e atenção que reservava ao real, quer da estratosfera, digamos assim, que acompanha, ou preenche melhor dizendo, o intervalo entre as coisas. Podemos interrogar-nos: mas para que servem estes quadros? E rebato a tese da inutilidade da arte para a vida através de uma contra-questão: e para que servem as guerras? Não é raro ouvirmos pela boca de algumas pessoas que uma guerra é um acto de limpeza e de regeneração. Não acredito nesta concepção, nem a considero, mesmo se a repudio moralmente, correcta do ponto de vista lógico. Uma coisa será a luta inevitável relacionada com o próprio de viver, outra, muito diferente, oposta e errada, é defender-se a aniquilação efectiva, deliberada, orquestrada, planeada: indefensável. Utilize-se uma imagem: uma coisa é preservar o fogo interior; outra é incendiar a cidade. Ou seja, é totalmente diferente pintar, como fez Van Gogh, e deixar-nos o seu testemunho pacífico, de dotar o mundo quanto a miséria, desagregação, confusão, divisão.

Deveria ser feito um sério diagnóstico quanto à saúde, ou ausência dela, daqueles que dotam o mundo de miséria, de desagregação, de confusão, de divisão. Devíamos endereçar os nossos esforços no sentido de demonstrar a insanidade das estruturas precárias, porque de volatilidade hostil, que se encarregam de disciplinar o mundo no sentido da guerra. E este é um motivo para o qual “Os Comedores de Batata”, quadro tão lúgubre e forte, pode ajudar-nos, duplamente: como imagem exemplificativa e como símbolo de resistência. Convenha-se que o imaginário campesino está defraudado, pela ingerência das indústrias de todo o tipo: as chaminés de fumo, que não é branco, esburacam qualquer possibilidade de reconstruir a inteireza da Terra; e também se imiscuiu insidiosamente nesse imaginário o palavreado contínuo e intransigente da televisão, da internet, etc. Mas ainda há quem se lembre de uma boa lareira, de uma boa espiga de milho, de um bom prato de bacalhau com batatas, e de como tudo o que descrevo é salutar, mesmo se em ambiente de aparente pobreza.

© Imagem de entrada: Os Comedores de Batata de Vincent van Gogh

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