“Luz e Memória”

Na Sala da Cidade, em Coimbra, com organização do Centro de Arte Contemporânea de Coimbra / Município de Coimbra e curadoria de António Albertino, “Luz e Memória” é/foi uma exposição solene e inolvidável…

Como começar? Exactamente: como transmitir-vos o que senti? Sendo sincera; é certo que tudo quanto escrevo se pauta pela honestidade, para comigo e para convosco, mas há aqui, creio, algo da ordem da existência relacionada com a vivência deste momento que, sinto, devo contar-vos. Não ia com esperança quando entrei na Sala da Cidade. Troquei algumas palavras com a senhora da recepção, que conheço desde a época em que trabalhou na Biblioteca Municipal de Coimbra e entrei na “exposição” sem ler o texto de parede, que verificaria depois ser, grosso modo, coincidente com o do folheto que acompanha “Luz e Memória” e assinado por António Cerdeira. Segui o apelo inicial para penetrar por entre uma fresta e vi, através da luz projectada numa ampola de vidro com água e um pequeno objecto no interior, uma paisagem nítida plasmada na parede. Saí. Avancei. Encostadas a uma das paredes exteriores do paralelepípedo oco onde se alojava a “ampola” iluminada, vi umas escadas de ferro relativamente pequenas, às quais se sobrepunha uma malha também de ferro, com uma lâmpada acesa associada. Avancei. Vi uma cruz composta por cinco placas-quadrados, disposta no chão e iluminada a partir de cima. Avancei. Vi cinco fotografias de crianças, sobre as quais incidiam focos de luz; inicialmente não me foi dado reconhecer que se tratava de rostos todos eles diferentes. 

Foi então que reparei nas caixas metálicas em que as fotografias assentavam, aproximei-me da instalação, afastei-me, distingui os rostos, olhei para trás, apercebi-me da sombra-teia que fazia com que as escadas anteriores fossem também outra coisa, olhei novamente a cruz no chão e entendi: é o Holocausto. Nesse momento, não fui capaz de permanecer mais tempo dentro daquela penumbra e saí. Confrontei-me com o texto de parede, colocado frontalmente em relação à entrada na sala onde ocorre esta “exposição” e confirmei: é o Holocausto. Subi as escadas, comecei a conversar com a senhora da recepção, dizendo-lhe que era uma “exposição” admirável e as lágrimas irromperam nos meus olhos. Trata-se de uma senhora delicada, de quem tenho grata memória, e, portanto, demorámos a nossa conversa por algum tempo. Acalmei-me. 

Vários sentimentos conviveram comigo enquanto estive dentro daquele casulo-de-tempo e depois continuaram a escavar-me por dentro, os quais gostaria de vos transmitir. Que as coisas são o que são, mas que é necessária a distância devida para as entendermos, para convivermos com elas, mesmo que nos magoem. Que um dos males do ser humano é confundir os outros e degluti-los. Que as coisas são não propriamente alucinadas, mas que é necessário um trabalho da memória que lhes dê a forma exacta para que se alojem dentro de nós. Que as coisas convivem umas com as outras, formando tessituras precisas, e quando se olha uma delas, tantas vezes a sua nitidez surge do contraste, da alternação, da complementaridade, relativamente a outra/s. Que o trauma exige sensibilidade. Que a vida, por natureza, não é composta de sucessão ensimesmada, mas antes de paisagens, ou seja, de coexistências. Que a arte mostra, sim, coisas, sentimentos, o invisível, mas como se fosse através de um passador: vê-se o ar através dessa malha metálica que é a obra de arte. Que arte pode, sim, edificar-nos: ontem, como hoje. 

Obras de Christian Boltanski, de Francisco Tropa e de Miroslaw Balka. A arquitectura do espaço expositivo esteve a cargo de João Mendes Ribeiro. Terminou no dia 20 de Agosto de 2022, e precisei de me distanciar para que o lastro inolvidável da intensidade com que fui atingida não me queimasse.

© Imagem de entrada: Christian Boltanski França (1944-2021)
Réserve: La fête de Pourim 10×10 caixas, 5 fotografias p7b, 5 candeeiros e 5 lâmpadas, cabos Instalação: 150cm x 235cm x 23cm
1988, AA CONTEMPORARY ART COLLECTION

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