Um BALUARTE no Porto

Decorreu entre os dias 16 de setembro e 1 de outubro uma iniciativa inserida no Programa de Arte Urbana da Cidade do Porto – PAU promovido, desde 2014, pela Câmara Municipal: a ela e a ele dedicaremos uma reflexão que se estenderá pelo tempo.  



Contaram-se: 16 dias para 3 fins de semana de exposição de arte urbana na BALUARTE; 14 artistas que criaram individual e coletivamente, nesta ocasião; 6 programas de visitas guiadas ao espaço – Quartel de Monte Pedral; 6 oficinas para pequenos, a partir dos 6 anos, e para maiores; 1 DJ Set com 6 variações; 3 conversas situadas em 3 sábados – “Arte no Feminino”, “Programação e Produção de Arte Urbana”, “Cidade, Arte Urbana e Direito.” A esta última conversa assisti e é com ela, a partir dela, que serão também tecidas considerações estimuladas, tanto pelo que foi debatido, como pelos caminhos que se abrem relativamente ao que foi dito. 

A realidade que se expande para lá do que é um corpo, ou seja, aquilo a que chamamos realidade por referência ao espaço-tempo que nos circunda, também é aquela, mas não certamente a mesma para toda e qualquer pessoa, que conseguimos abarcar nesse corpo efetivo; ou seja, a cada corpo-sujeito equivale uma parcela de construção da realidade e se bem que “a realidade” não deva ser o somatório de todas as construções individuais, também é verdade que algumas destas se rebatem exemplarmente “na realidade” e resinificam-na. Nesta resinificação, a arte e a/os artistas ocupam um lugar de facto bastante importante. Por exemplo: aquilo a que chamamos “natureza” no epicentro da Modernidade impulsionada pela Revolução Industrial, essas “paisagens” que faziam pairar sobre as cidades os ares de uma nostalgia fundada na despedida – a do indivíduo que pagou a profundidade psíquica, revelada enfim pela psicanálise, com a dissociação definitiva em relação à Terra; é, essa “natureza”, uma radical construção levada a cabo por pintores/as e poetas, que nos presentearam com as visões, tanto bucólicas, como iridescentes, ou inflamadas, mas sempre muito sentidas, dessa visibilidade primordial e depois partilhada socialmente. Porque a/o artista é, por natureza e vocação recorrentemente praticada, um corpo-essencial-com-olhos: olhos que tem de abrir e que tem de fechar. 

A arte urbana, embora sejam ouvidos ecos provindos do século XIX e até possamos tomar “as passagens de Paris”, que Walter Benjamin escreveu deambulando, enquanto paradigma de captação da fugacidade visual da cidade-contemporânea, para não referir agora os exemplos históricos de expressão artística e contestação social nas paredes transformadas em murais, trata-se, a arte urbana como nos referimos a ela hoje, de uma forma de expressão que se finca nas cidades-globais a partir da segunda metade do século XX e que se sintetiza na expressão “street art”. Entretanto, a arte urbana tornou-se um motivo de atração dentro das cidades e mapearam-se circuitos à escala global que induzem os peregrinos deste nosso tempo a deslocações frequentes; neste sentido, os projetos de arte urbana levados a cabo por entidades públicas poderão sobrepor o seu reconhecimento à potência criativa da arte urbana, mas certamente que também pretenderão ativar mecanismos de proteção de uma arte, a céu aberto, tão exposta. Pois na conversa que decorreu no dia 30 de setembro – “Cidade, Arte Urbana e Direito”, associada ao programa paralelo que a exposição BALUARTE proporcionou, nestas questões se iria também incidir: a atratividade da arte urbana e os fluxos de turismo que induz; a sua potência de inventividade; a especificidade de uma manifestação artística cujo grito é público, na medida em que eclode nas ruas, mas grito a que não têm sido indiferentes, nem a sociedade, nem determinados agentes da arte, nem, como se confirma na cidade do Porto, os municípios.
 

Conversa “Cidade, Arte Urbana e Direito.”


“Cidade, Arte Urbana e Direito” juntou António Oliveira, Investigador do Centro de Estudos Interculturais e Docente do ISCAP, e André Lamas Leite, especialista em Direito Penal e Professor na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, a quem coube iniciar a conversa após o repto da moderadora, Maria Raquel Guimarães, também Professora na Faculdade de Direito da Universidade do Porto (e Investigadora do CIJ). André Lamas Leite começou por enunciar a tensão entre o Direito e a Arte, ou seja, entre o que é normativo e regulado por limites, por um lado, e o que tange o ilimitado ou, diria pela minha parte, tende para o infinito: a proposta para atenuar tal tensão, no nosso país, viria através da Lei nº 61/2013, que coloca Portugal no grupo que consente os grafitos, termo que o orador prefere usar, desde que aprovados pelas câmaras municipais e feitos em espaços expressamente designados para tal; o outro grupo de países do Mundo opta pela proibição, postura que continua a ser a mais comum. Perante dilemas eventuais relativamente às apreciações dos projetos de grafitos apresentados às câmaras, o especialista em Direito Penal entende que deveriam ser crivados por uma comissão independente. Neste entorno, Maria Raquel Guimarães manifesta: arte é transgressão, e passou a palavra…

António Oliveira, e perante os possíveis danos patrimoniais causados na cidade pelos graffiti (termo que adota), destacou o valor simbólico que criam e, através deste, como têm vindo a transformar as cidades em campos de inscrição da arte a céu aberto, atraindo assim um turismo específico e lucrativo; o outro lado da moeda, no entanto, passa pela apropriação económica dos graffiti e remete, ainda e também aqui, para um problema por si considerado sintomático e efetivo na sociedade atual – o da criação e repartição de valor, em que o lema “do it together, profit for me” se impõe. Em face das desigualdades resultantes, lamentou que o paradigma de aferição da qualidade vá assentar quase sempre no “quanto vale” e relembrou esse germe de “intervenção política” patente na arte urbana. A moderadora corroborou a ideia subjacente de que é através do mercado que a arte n/das ruas se integra nos museus e galerias, e António Oliveira partilhou, nesse momento, duas ideias-chave: por um lado, estes/as artistas não são domesticáveis e a arte depende deles/as, logo, também não é domesticável; por outro, faz sentido, por uma questão também de salvaguarda da autoria e dos direitos de autor inerentes, acomodar os graffiti enquanto atividade económica. 

Lançado o repto por António Oliveira quanto à criação de valor pelos graffiti, Maria Raquel Guimarães haveria de questionar André Lamas Leite sobre se uma abordagem penal não poderá considerar-se desajustada para estudar o fenómeno da arte de rua. Realmente, e valendo-se da Teoria das janelas quebradas (Broken windows theory), o professor da área do Direito assinalou que a “street art” estará potencialmente relacionada com ambientes que proporcionam maior insegurança subjetiva, ao que António Oliveira reagiu, airosamente também, distinguindo uma arte, extrapolo, asséptica, da forma como a arte urbana penetra em profundidade no quotidiano e aparece, extrapolo, como contaminação. Ambos, André Lamas Leite e António Oliveira, se revelaram preocupados com os mecanismos de apropriação, sempre abusivos, e sobretudo exercidos pelo mundo empresarial, e defenderam: tanto a necessidade de configurar o que é feito pelos/as artistas enquanto obra, como, em conexão, os direitos autorais que lhes são devidos. 

A BALUARTE acabou no dia 1 de outubro de 2023 e o PAU – Programa de Arte Urbana da Cidade do Porto conta 9 anos: agora juntou 14 artistas – Arisca, Costah, Dub, Facio, Godmess, Hazul, Mariana PTKS, Mr Dheo, MrKas, MURA, MynameisnotSEM, Oaktree, RA.SO.AL e Rafi die Erste; e no futuro o Programa há de continuar.  Já aqui lhes será dedicado, nos próximos tempos, um amplo espaço de reflexão.

© Fotografia: Andreia Merca – Ágora  CMP

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