Goya e “Contra el bien general”

Foi nos inícios do século XIX, enquanto Napoleão também derramava sobre a Europa à lei da espada os valores da Revolução Francesa, que Goya congeminou os seus e os nossos “Desastres da Guerra”. 

Em cada tempo preciso existe sempre tudo, que se encaixa em planos diferenciados e coexistentes. Podemos afirmar que os tópicos de cada tempo correspondem a uma hiper-realidade identificável, hoje, como há cem anos, através da uniformização e da mesmidade, da tirania do Mesmo, correlativa da imposição ou indução de modos de vida que obstam à experiência concreta, do indivíduo.

A esta última podemos chamar, agora, hipo-realidade: o indivíduo, pese embora a palavra “liberdade” se pronuncie como mantra contemporâneo, está sepultado nos escombros da brutalidade hiper-real. O Mesmo, como Emmanuel Levinas por exemplo o explica, é quem está no Mundo como se a Terra se apresentasse familiar em todo o lado, cujos recursos pudessem ser, e são, integralmente usados em benefício pessoal. 

Enquanto isto: as palavras perdem os seus referentes efetivos e elevam-se à categoria de agentes da mesmidade. Quando Goya gravou os “Desastres da Guerra” fixou nesta proposta com o número 71 uma criatura, certamente de fábula, mas que sintetiza visualmente a maldade: umas asas de morcego, pese embora as qualidades que o animal possa apresentar, sempre indiciaram ambientes e horizontes que no senso comum se consideram funestos.

E é assim, também, que “Contra el bien general” passa a mostrar-nos numa alegoria visual o plano maléfico de, estou convicta, metade da humanidade. É incrível como a violência atinge sem dó nem piedade o cerne do órgão interior do humano que se responsabiliza pela reflexão, tornando-o ainda tendencialmente insensível. E, todavia, afigura-se sempre necessário testemunhar o tempo em que vivemos, sem com ele estabelecermos os compromissos vergonhosos da anuência. 

A época contemporânea deu-nos uns valores universais, que podemos considerar terem sido ideais em marcha, digamos assim: logo à cabeça encarnados por Napoleão, mais o seu cavalo branco, composto em que Hegel descortinou a encarnação da totalidade ideal. Escusado será dizer que tais valores se colocaram ao serviço de atrocidades, muitas delas hoje com contas a prestar pela Europa em demanda de povos espoliados.

Por outro lado, a substituição dos valores universais pelos interesses particulares não nos encaminha para nada de bom, nem tampouco devemos orientar-nos por uma moral de ferro. Mais uma vez recordo Emmanuel Levinas, quando afirma que o pensamento, mormente o filosófico, deve misturar-se com as preocupações da hora, assim como a palavra é sempre dirigida. 

Emmanuel Levinas é, para mim, um filósofo e pensador fulcral que não compreendi logo, mas do qual não desisti porque intuía algo de muito importante no que nos propõe, bem sintetizado num mandamento que o rosto do Outro profere: “Não matarás”. Creio que consegui alcançar o cerne das suas preocupações; contudo, ao longo dos anos constatei em diversas ocasiões a incompreensão que se lhe dirige, tanto patente na dificuldade em apreender o bem e a bondade enquanto pressupostos de organização social, como através de testemunhos de pessoas que me afirmaram precisamente nunca terem entendido quais os problemas que o ocupavam.

E o que Goya nos demonstra com os “Desastres da Guerra” é, antes de mais, o absurdo da guerra; mas, hoje, estamos sitiados por dialética ininterrupta que pretende averiguar da utilidade, da pertinência, do sentido, da guerra. Em face da crença numa progressão geométrica dos valores associados à democracia, a guerra deveria ser interdita: então, resta-nos concluir que a aritmética está errada, ou antes, que metade do mundo nesta Terra permanece “Contra el bien general”, como Goya bem viu na sua gravura número 71 da série “Desastres da Guerra”.

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