Fire Supply, de Lucía Seles
DA VAGA DE SALA – Especial Doclisboa
Grafomania – necessidade patológica de escrever, de rabiscar, ou de fazer registos gráficos [lemos numa breve consulta por dicionários online]. Foi como grafómana que Lucía Seles se apresentou e se assumiu, este sábado no Doclisboa, debitando a uma velocidade alucinante, num espanhol da Argentina, escritos descritivos da sua passagem por Coimbra, das pastelarias que lhe enchem o coração, até chegar à Avenida de Roma, em Lisboa, onde outras pastelarias lhe aguçaram o apetite para prosseguir a registar coisas no seu bloco de papel pelos lápis de diferentes cores que faz questão de sacar do bolso para nos mostrar; e dos bolsos saltam também memórias plastificadas que vai criando e transportando em pequenos cartões – assim foram os instantes iniciais que antecederam o visionamento do seu Fire Supply (2024) [Fonte de fogo, literalmente], filme que, soubemos entretanto, foi um dos dois vencedores do Prémio Cupra do Júri da Competição Internacional (do festival). Assim fecha a DA VAGA DE SALA – Especial Doclisboa’24. A grafomania de Lucía Seles transporta-se pois para o seu cinema, conferindo-lhe uma identidade rara, pela câmara, pela montagem, pelos diálogos, pelas anotações (escritas) que vai deixando de quando em vez no ecrã. O cinema de Seles é feito de uma simplicidade complexa, uma vida sem ordem – como alguns planos invertidos que vemos servirão para nos dizer que a vista da vida depende sempre da perspetiva – temporal e narrativa. Obsessões, fragilidades e amor ensinam a caminhar e sentir, por entre a vida, o tempo cronológico e a morte (relativizada). Na passada sexta-feira, também no Doclisboa, no filme Duras et le Cinéma (2014), de Dominique Auvray, ouvimos Marguerite Duras dizer-nos que os seus filmes exigem 80% de responsabilidade ao espectador, inversamente à maioria dos filmes, que, segundo ela, pedem apenas 20% de pensamento e reflexão de quem vê. Diria que Fire Supply andará próximo dessa percentagem definida por Duras (para os seus filmes), mas dependerá sempre da perspetiva de quem vê e de como se vê.
A câmara de Seles segue permanentemente aberta a estímulos da vida, do que está a acontecer, num campo de visão de grande amplitude, mas partindo sempre da proximidade, do perto para o longe, procurando, saltitando, alternando, espreitando, rodando, movendo-se como se fosse uma cabeça humana de olhar aberto e espevitado. Os letreiros das lojas, os néones, as montras, as fachadas dos edifícios, a frente da pastelaria, do hotel, do terminal de autocarros, os interiores e os exteriores, vão e voltam, alternam e entrelaçam-se pela montagem, como se os registos gráficos de Seles estivessem sempre à mão de semear, em cartões plastificados, prontos para saírem do bolso quando necessários, lembrando-nos que a vida nunca se resume ao instante e ao imediato ou apenas ao que vemos num palmo à frente dos olhos; vemos efetivamente mais do que achamos que estamos a ver e o nosso cérebro faz o favor de encaminhar-nos para lugares-imagens, que já vimos e vivemos, a partir daquilo que nos parece colateral num determinado momento. Num terminal de autocarros, onde Sérgio acompanha a mãe no regresso desta da grande cidade – onde o filho vive e trabalha, um complexo de ténis, desporto do qual a realizadora Lucía é fã, apossando-se por sinal do apelido Seles, da antiga tenista Monica Seles (menina-prodígio do ténis mundial entre finais dos anos 80 e início dos anos 90, que viria a sofrer um esfaqueamento nas costas durante um jogo, por um adepto), e atribuindo o apelido do também ex-tenista Lleyton Hewitt, australiano, ao responsável do complexo de ténis na história, inclusive Fire Supply segue a continuidade do ‘ciclo do ténis’, com as mesmas personagens, depois dos filmes Smog en tu corzón (2022); Saturdays Disorders (2022); Weak Rangers (2022) e Terminal Young (2023) – para a terra natal San Juan, ela deslumbra-se a cada passo que dá no vislumbre daquilo que vai aparecendo, o ferro que sustenta a estrutura do terminal e que lhe dá robustez, a ampla sala de espera e a contabilização da quantidade de pessoas que pode abarcar, as amadas pastelarias, o detalhe das cadeiras de madeira no interior, desde o estofo do assento até ao detalhe do design. Sentados nestas cadeiras, a câmara alterna entre um plano interior de mãe e filho, com outro no exterior da câmara a filmar apenas o rosto de Sérgio da parte de fora, juntando ainda um plano de um homem solitário na pastelaria, e um outro plano, num outro café/pastelaria, este no complexo de ténis onde vemos Luján – amiga de Sérgio, por quem ele sente enorme afeição – a tocar guitarra, guitarra essa que confere a música diegética para toda esta alternância, enquanto ouvimos a mãe a dizer ao filho que só sente falta de uma coisa naquele momento, naquele terminal: poder escolher o clima, baixar 16 graus de temperatura, para poder ver as pessoas todas agasalhadas naquele aconchego – a mãe é efetivamente o alter-ego de Seles, que na conversa com o público confessou abominar o sol e venerar o frio e o céu cinzento. E já fora do terminal – a mãe acabou por não partir já de volta para San Juan porque se apaixonou pelo proprietário da pista de gelo onde algures num tempo que não vemos o filho celebrou o aniversário e, como tal, anseia voltar a vê-lo – acompanhamos o passeio dos dois (mãe e Sérgio) pelas ruas da cidade, para irem às compras. Enquanto caminham pelas ruas movimentadas, a mãe vai parando e olhando para o seu redor, fica embebecida com a montra de uma loja de relógios, pelas luzes, pelos letreiros, pela harmonia da paisagem urbana – intrinsecamente relacionada com as pessoas, como deve ser -; e vemo-la a erguer o pescoço para vislumbrar uma pequena janela no alto de uma casa, que ela enaltece pelo propósito arquitetónico de permitir a entrada de luz. Numa outra cena, vamos acompanhando uma outra personagem, ex-tenista e atual professora de ténis, no complexo onde trabalham Sérgio e Luján, ensinar os seus alunos – três homens adultos – a caminhar e sentir, ao mesmo tempo, entre cada ponto, pensando no pai, na mãe, num hospital, e em outras coisas várias, mas apenas uma de cada vez, em cada ponto. Diferentes diálogos, com diferentes personagens, em diferentes momentos, vão exalando essa grafomania em ramificação, e, por conseguinte, estabelecendo harmonia na história, no filme, num ensinar a caminhar e sentir em dimensões distintas. E para que a sua grafomania seja plena e literal, Seles injeta, em alguns momentos, as suas anotações no ecrã, sobre aquilo que vai vendo, o tal colateral – uma rapariga que continua a estudar no terminal dos autocarros; uma senhora que fala com as peças de roupa na boutique; duas mulheres na rua no seu mundo, sozinhas, abstraídas da realidade.
Esta é a vida de Seles, esta é a vida de Fire Supply. Uma vida em que o tempo (cronológico) é uma obsessão, um tempo que os cães e os calendários ajudam a que passe mais devagar. Pia Girafa, a cadela branca do dono do complexo de ténis, morreu; ao dono resta-lhe agora ir para o centro da cidade, para as avenidas, ver outros cães, para que o tempo continue a passar mais devagar, eis o conselho de Luján, ela que se desdobra a recolher e agrupar calendários para o irmão, que toca jazz e que aparentemente só consegue relacionar-se com a irmã (Luján). Olhar para calendários e andar de táxi pelas avenidas, a alta velocidade, mas sem destino pré-definido, são os paliativos do músico. O tempo que é balizado com exatidão pela mãe de Sérgio – tem 56 horas para voltar para San Juan -; contabilizado minuciosamente pela professora de ténis – esteve 16 minutos em silêncio com um aluno bonito, momento para o qual não estava preparada -; e é definidor de intervalos para os cigarros fumados de Pilar, a rececionista do hotel onde fica hospedada a mãe de Sérgio, pela passagem dos comboios à frente do edifício a um determinado horário. O tempo que nos terminais dos autocarros ou em estações de comboio parece sempre passar mais devagar. É como se o tempo congelasse, nesses lugares, dando-se depois um descongelar gradual, lento, até à nossa partida. Nos terminais e nas estações deixamos de usar o tempo, somo usados por ele. Ficamos presos ao lugar e à constante verificação da hora de partida, estamos reféns de um tempo que demora a passar e que nos coloca irremediavelmente a pensar na sua passagem. Talvez também por isto a mãe de Sérgio goste tanto do terminal – para fazer render as 56 horas que lhe resta na grande cidade -, manifestando mesmo a vontade de regressar a ele antes da partida, apenas para passar o tempo, porque já andou pelas avenidas do centro e porque a morgue, que a rececionista aconselha a visitar, é sobre morte e a morte não lhe interessa. “Está apenas a 28 metros do hotel”, diz-lhe Pilar, que pelo tempo que passa a solo, confinada à entrada daquele pequeno hotel – vemos várias vezes o plano dela a fumar na frente do hotel, por baixo do grande letreiro -, e pela proximidade da morgue, terá tempo para pensar na morte. A morte que para Sérgio “é apenas um acidente de viação que termina bem”, um consolo para o dono da cadela Pia Girafa; a morte que apanha o locutor da rádio e podcast ‘Paisagens Noturnas’.
Obsessões, fragilidades e amor trespassam todas as personagens de Fire Supply, unindo-as umas às outras em círculo, num círculo de retorno. Sérgio e Luján recebem a reciprocidade do cuidar e do afeto de mãe e irmão, respetivamente, quando estes lhes ensinam a sentir enquanto caminham – mesmo que o caminhar do irmão de Luján seja num táxi a romper as avenidas – para que no final possam atravessar a rede do court para um abraço de entrega.