Husøy, onde o ‘fiel amigo’ passa de mãos portuguesas para Portugal

É deste ilhéu do extremo norte da Noruega que são exportados, por ano, 6.000 toneladas de bacalhau, para o nosso país. Lá, onde o frio e a neve do círculo polar Ártico não dão tréguas, vivem cerca de 20 portugueses. Outros repetem a temporada de janeiro a março, época do ano profícua em peixe nas águas gélidas do Mar da Noruega.

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No extremo norte da Noruega

Husøy é o centro nevrálgico da empresa norueguesa BR Karlsen. Só na fábrica do bacalhau trabalham mais de uma dezena de portugueses, número que aumenta na época mais profícua em bacalhau nas águas geladas do Mar da Noruega, isto é, entre janeiro e março. A fábrica do salmão e o supermercado de Husøy são outros locais de trabalho dos demais portugueses que vivem na Noruega. “Temos conseguido captar muitos trabalhadores, de Portugal inclusive. Neste momento, devemos ter 25 portugueses em Husøy e a grande maioria está a trabalhar nesta fábrica”, afirma Rita Karlsen, com formação em Economia, neta do fundador Hilbert Karlsen e CEO na empresa desde 2010. 

A empresa foi fundada pelos irmãos Hilbert e Aksel Karlsen, que chegaram a Husøy em 1932. À época, era uma ilha deserta e o acesso era feito através de barco. O objetivo de ambos era consolidar ali a pesca de bacalhau. Porquê? Porque o mar que banha aqueles fiordes consta na rota migratória do “fiel amigo”. Ambos compraram uma fábrica de transformação de pescado e, nas décadas seguintes, contribuíram para o desenvolvimento de Husøy. 

Na viragem para o século XXI foi construída a ponte que liga as ilhas Senja e Husøy. Em 2010, iniciaram a exportação de bacalhau para Portugal. A aposta na transformação, na exportação e no retalho são determinantes para os sucessivos investimentos na modernização do equipamento da fábrica. “Temos uma das fábricas de transformação de peixe mais modernas da Europa”, garante Rita Karlsen.

Em águas gélidas

Ao leme da embarcação que pesca o peixe para a BR Karlsen, e de olhos postos, ora no mar, ora nos ecrãs dispostos à sua frente, está Henrik Meland, de 30 anos. É natural de uma cidade localizada a norte de Tromsø, mas há dez anos mudou-se de malas e bagagens para Husøy, a terra-natal da mãe. Dedica-se à pesca há oito anos e é capitão há cinco. Conta-nos que o bacalhau de maior porte que pescou até hoje tinha 44 quilos. Conseguiu esta proeza em 2022.

“É comum encontrar bacalhaus entre os 20 e os 30 quilos, e a maioria aparece em março”, revela. Depois de pescado, o bacalhau é sangrado, isto é, é-lhe extraído o sangue, e colocado nos tanques de água a cerca de 0 °C, dispostos no fundo da embarcação. “A salga é feita na fábrica.”

“Antes, trabalhava numa embarcação com 36 anos. Mudei para este há um mês e não tem nada a ver.” Está equipado com nova tecnologia de ponta, que permite dar informações in loco sobre a temperatura da água, a localização das outras embarcações e dos cardumes, da profundidade das águas… “Aqui, temos uma profundidade de cerca de 40 metros”, informa Henrik Meland. Poder-se-ía encontrar, aqui, o ‘fiel amigo’ dos portugueses, mas “o melhor sítio do mundo para pescar bacalhau é em Grimsbakken e em fevereiro”, diz o capitão, apontado com o cursor no ecrã.

Apesar de curta, esta viagem de barco foi elucidativa no que toca à paisagem em redor, cravejada de enormes montanhas, carregadas de neve, a elevarem-se sobre o Mar da Noruega. Um cenário inóspito e, ao mesmo tempo, de uma beleza inusitada.

Investir, modernizar

A aquisição recente de um novo equipamento comprova o investimento constante da BR Karlsen. Trata-se da máquina, que contempla todas as fases de execução, isto é, a recepção, o corte e a seleção das partes dos peixes, de forma mais rápida e eficiente. “Esta máquina fica ativada durante mais alguns meses, mas, depois, será desativada”, diz Rita Karlsen, referindo-se ao equipamento anterior e à época de maior afluência de peixe no mar, a qual está a chegar. 

Assim que o barco atraca nesta parte do porto de Husøy – uma espécie de corredor extensível ao longo da parte exterior do edifício, construído junto ao mar –, o peixe é transportado para esta nova máquina de escolha instalada no espaço contíguo à zona de embarque. Uma vez no tapete de escolha, é feita a seleção das espécies, seguindo-se o corte da cabeça. É feito o corte longitudinal na barriga, para retirar as vísceras. Sem esquecer de que também é extraída a espinha dorsal.

Por fim, o bacalhau é submetido à salga e à cura. No contexto do bacalhau salgado da BR Karlsen, é preciso ter em conta os tamanhos – miúdo, corrente, crescido, graúdo, especial e jumbo. Por ano, são pescadas 10.000 toneladas de bacalhau. Destes, 6.000 toneladas são submetidas a salga. É precisamente este o peso que o ‘fiel amigo’ tem na exportação para Portugal.

Segundo os dados registados pelo Conselho Norueguês das Pescas, entre janeiro e novembro de 2024, Portugal é o país que ocupa o primeiro lugar no top 10 da lista dos principais mercados de exportação de bacalhau no que toca ao volume e ao valor. No primeiro caso, representa 25 por cento; no segundo caso, representa 36 por cento. No entanto, a redução das cotas de pesca vai ter consequências na exportação para Portugal no biénio 2025/2026.

Comunidade local e meio ambiente

A construção e venda de imobiliário constituem as mais recentes ações da BR Karlsen em em Husøy. O projeto de construção do novo conjunto de edifícios destinados aos serviços, à administração da empresa, à fábrica, com loja e apartamentos é disso exemplo. Rita Karlsen, que tem a visão otimista da conclusão desta obra em 2025. 

“Quando tomamos qualquer decisão, temos de pensar nos locais. Para nós, que vivemos no meio da Natureza, é mais fácil pensarmos sobre a sustentabilidade do que quem vive em Oslo”, sublinha a nossa anfitriã a propósito da missão de preservação do meio ambiente. Sobre esta temática, a CEO da BR Karlsen refere a vontade de utilizar exclusivamente eletricidade como fonte de energia, mas “aqui, no norte da Noruega, o acesso à eletricidade não é suficiente”.

Em paralelo, todas as partes do bacalhau e do salmão são aproveitadas, no sentido de minimizar o impacto ambiental. Em relação ao ‘fiel amigo’, tanto o fígado, transformado em óleo de bacalhau, o fluído seminal e as ovas, como espinha dorsal, a cabeça e a língua são vendáveis. Sobre esta última, a CEO da BR Karlsen refere Portugal como o principal mercado de exportação. “Também as crianças, depois da escola, vêm ver o corte das línguas dos bacalhaus. Não são nossos empregados, mas podem vir. É cultural para nós que venham”, enaltece.

Fazer a temporada ou para ficar?

O crescente número de portugueses em Husøy divide-se entre quem opta por passar uma temporada no ilhéu, para trabalhar na fábrica do bacalhau da BR Karlsen, e quem troca definitivamente Portugal pela Noruega.

José, a quem todos tratam por Zeca, entra na primeira lista. Natural de Braga, tem 28 anos e formação em engenharia civil. Está como freelancer numa empresa no Porto, o que lhe permite organizar o tempo entre o ecrã de um computador e a fábrica do bacalhau. É a quarta temporada que está a fazer na BR Karlsen, ou seja, “venho nesta época do ano desde 2022”. Ganhar bem é o propósito desta missão, realidade aumentada entre janeiro e março, período em que não há mãos a medir no trabalho diário. 

José de Sousa, de 40 anos, está decidido a ficar em Husøy, com a mulher, Rosa Freitas, com 42, e as duas filhas, Eva, de 12 anos, e Ísis, de 10. José de Sousa já tinha estado na ilha entre janeiro e março de 2023, para trabalhar na fábrica do bacalhau da BR Karlsen. Durante esse período de tempo, “pouco conseguia perceber como era a paisagem da ilha”, por causa da inexistência de luz natural. Seguiu-se a apanha da fruta em França, entre agosto e outubro de 2023 até decidir regressar à Noruega. Foi o que aconteceu em janeiro de 2024. 

O gosto pela ilha e pela comunidade determinou José de Sousa a falar com a família Karlsen e com a professora da escola local sobre a possibilidade de ali viver com a família e “se haveria trabalho para a Rosa”, acrescenta. Os quatro viajaram, de carro, da Maia, no norte do país, para Husøy em agosto de 2024, passando pela cidade de Paris. “Quando chegamos, os miúdos daqui foram apresentar as casas à Eva e à Ísis. Os noruegueses são corretos, são mais descontraídos no trabalho”, avança. 

Hoje, residem numa casa arrendada e localizada em frente à fábrica do bacalhau, de onde José de Sousa sai, à hora do almoço, para preparar a refeição para as filhas e para ele. Rosa Freitas permanece, durante este horário, na fábrica do salmão, porque fica mais longe de casa. Na escola, há dias temáticos: “hoje é dia de acampar na montanha, hoje é dia de andar de bicicleta, hoje é dia de andar de barco… É um descobrimento escolar permanente”, remata José de Sousa. 

“A adaptação é um processo”, começa por contar Maria, de 34 anos, uma das empregadas do supermercado contíguo à fábrica da BR Karlsen. Há dez anos trocou Lisboa por Husøy, onde as temperaturas negativas, o vento e a neve foram dificuldades que teve de ultrapassar gradualmente. “Quando vim, não tinha um plano. Fui ficando até chegar ao ponto em que aceitei a escolha. Não gosto do clima, mas tenho de aceitar.” O namorado adaptou-se mais facilmente. “É do Porto”, justifica. 

Hoje, sente-se mais apaziguada com a escolha de vida que fez. Tem um filho de quatro meses, que leva a passear sempre que não há vento ou não neva. “Aqui há um ritmo de vida que obriga a desacelerar e a família Karlsen ajuda as pessoas quando precisam”, afirma, enaltecendo a entreajuda instalada na comunidade de Husøy. “Não tenho de trancar a porta, organizam festas em que participamos todos… É um sossego”, defende Maria, que quer permanecer na ilha por causa do futuro do filho: “aqui, pode sonhar o que ele quiser.”

Do Mar da Noruega para as mesas portuguesas

O bacalhau de tamanho jumbo é um dos mais comuns às mesas localizadas nas coordenadas das terras lusas. É pescado no mar gélido do extremo norte da Noruega. A origem é Husøy. Tem seis meses de cura e demora duas semanas a secar, devido ao tamanho e ao peso. Na Lugrade, é-lhe atribuído o nome ‘Magnus’, designação alusiva a Magnus I, rei da Noruega no século XI, com o cognome “O Bom”.

Quando comparados com os bacalhaus com outras origens, o da Noruega apresenta uma textura mais macia. Já agora, sabia que o bacalhau perde cerca de 80 por cento do peso desde o momento em que é pescado até estar seco?


BR Karlen
© Fotografia: João Pedro Rato

{ A Mutante viajou à Noruega a convite do Seafood from Norway }

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