'O quarto ao lado', de Pedro Almodóvar (2024)

Não fosse o kitsch e (quase) só sobraria o vazio

‘O Quarto ao Lado’, de Pedro Almodóvar
DA VAGA DE SALA

Mais do que o suporte legal que a eutanásia confere à pessoa doente (dentro do quadro clínico em que é aplicável) de poder colocar termo à sua vida, julgo que o confidenciar da vontade, às pessoas com quem se quer partilhar tal decisão, bem como o apoio e a solidariedade dos mesmos, serão os fatores mais proeminentes na destrinça entre suicídio (geralmente um ato de escolha sem direito a partilha com os outros) e suicídio assistido (um ato consentido, conhecido, partilhado). Mais do que compreender essa escolha de um doente em estado terminal – uma decisão tão individual que só pode e deve ser respeitada, à semelhança de uma mulher que decide fazer um aborto -, interessa-me mais particularmente o comportamento do(s) confidente(s), sejam familiares ou amigos, para observar, assimilar e refletir sobre. Como reagem perante tal decisão? O que fazem a partir daquele momento? Que critérios pesam mais na concordância ou discordância? Prevalece o posicionamento de princípio face à eutanásia ou aquela situação tão próxima e pessoal pode mudar a perspetiva? E se houver discordância, mas ainda assim a pessoa doente decide avançar com a sua decisão. O que faz o confidente? Retira-se de cena? Permanece e acompanha contrariado? Submete-se à tentativa de aceitação e concordância? Como passa a ser a interação? E terminado o processo, e a vida em causa, que transformação se deu no confidente? Como fica de agora em diante? São muitas questões e a maioria delas não têm resposta, ou não são aprofundadas, para meu desânimo, em ‘O Quarto ao Lado’ (2024), de Pedro Almodóvar. O filme é capturado e absorvido letargicamente pela ideia, proximidade e inevitabilidade da morte, assumindo esse estado como condição natural, renunciando ao inesperado, ao rocambolesco, à intensidade, ao inusitado, à rutura ou à reconstrução, tão presentes no cinema de Almodóvar. Ver o ‘O Quarto ao Lado’ gerou-me uma sensação idêntica àquela que tive, há sensivelmente um ano, quando vi ‘Golpe de Sorte’ (2023), de Woody Allen – foi aqui trazido em DA VAGA DE SALA, em Novembro de 2023 -, uma espécie de vazio nostálgico. Almodóvar faz um filme com língua e atores norte-americanos; Allen  faz um filme com língua e atores franceses; quer um quer outro – já em fases quase terminais das respetivas carreiras – parecem comandados e engolidos pelo desejo de fazer um filme de (e para) França (Allen) e Estados Unidos (Almodóvar), acima de tudo mais, condicionados também pelo acelerar vertiginoso do tempo, rumo ao fim, do cinema ou da vida, tanto faz, pois confundem-se, são indissociáveis para eles. ‘O Quarto ao Lado’ e ‘Golpe de Sorte’ já não têm tempo para o detalhe, para a maturação, para depurar a criatividade, para o verter da identidade; ambos os filmes existem apenas como símbolos de glorificação universal de dois cineastas icónicos.

Pois é, estava deveras expectante pela transformação que iríamos presenciar na relação entre as amigas Martha (Tilda Swinton) e Ingrid (Julianne Moore), a repórter de guerra, doente de cancro em fase terminal, e a escritora, escolhida para confidente e assistente num suicídio com contornos de eutanásia. No meu imaginário pairavam as histórias do enfermeiro e da paciente em coma (‘Fala com Ela’, 2002); do cirurgião plástico e da cobaia forçada (‘A Pele Onde Eu Vivo’, 2011); ou, mais recentemente, das duas mães cujas crianças foram trocadas na maternidade (‘Vidas Paralelas’, 2021), pelo que antevia, ao mesmo tempo que ansiava, a quebra daquela constância, aquela estranha, insípida e inquebrável linearidade rumo à inevitabilidade, tão pouco ‘almodóvariana’. Está lá a presença do tão famigerado, inimitável e distinto kitsch na estética do seu cinema, quer em casa de Martha, quer na casa recém-alugada de Ingrid: na primeira, na arrojada combinação de cores fortes e vivas – vermelho, azul, verde -, nos quadros (não) relacionáveis pendurados nas paredes até aos livros empilhados; na segunda, o mobiliário vintage com aspeto envelhecido e usado a predominar, e, no caso disto não ser suficiente, ainda ouvimos Damian (John Turturro) – amigo de Ingrid e antigo amante de ambas – dizer que a casa parece ter sido decorada apenas com coisas do lixo, ao que Ingrid responde que sim, mas tudo com bom gosto. O kitsch de Almodóvar transita depois, ainda que em doses bastante comedidas, para a casa que Martha – aluga durante um mês – escolhe para morrer, acompanhada de Ingrid no quarto ao lado – a amiga acabaria por instalar-se no quarto do rés-do-chão, provavelmente para dar mais espaço à incursão do suspense, repetidas vezes, sempre que Ingrid sobe as escadas lentamente para espreitar se a porta do quarto de Martha está aberta ou fechada (sinal de vida ou de morte); movimento esse invariavelmente acompanhado pela tensão da música do fiel Alberto Iglesias, por vezes em doses cavalares, colocando mesmo o filme ao serviço da música em vez do inverso: a música ao serviço do filme, como deve ser.

Já com as duas amigas instaladas na casa embutida e isolada na floresta – de arquitetura brutalista, com os longos e intermináveis vidros a possibilitarem conexão e simbiose com a natureza, a vida em estado puro, ainda que vivida no faustoso conforto de um habitat construído a preceito – e com Damian na zona, perto, numa conferência, imaginava que o sexo – apelidado de escudo para a morte na guerra pela própria Martha – entre as duas amigas pudesse dar-se, ou entre Martha e Damian, ou entre os três em simultâneo, qualquer um dos cenários seria mais do que verosímil no cinema do espanhol. O sexo como o último dos desejos – em conversa com Ingrid, Damian diz-lhe mesmo que é o único desejo que vai mantendo, com a pandemia perdeu os restantes – fica iminente apenas nas palavras, nem sequer nas palavras que o antecedem ou que o negam, apenas em palavras de conversas quotidianas e memórias do passado. E por falar em memórias, talvez seja de ‘Dor e Glória’ (2019) que ‘O Quarto ao Lado’ busca aproximação, ambos versam sobre o fim da linha, ambos recuam até ao passado longínquo, mas com viagens de diferentes sentidos e profundidades. O passado que vemos da vida de Martha nunca incide efetivamente nela própria, nos seus alicerces, como vemos no protagonista de ‘Dor e Glória’, e também não há uma correspondência no presente, na exploração efetiva da personalidade de Martha. A própria diz que o trabalho ocupou-lhe demasiado a vida, mas só presenciamos a um recuo visual ao passado para mostrá-la a testemunhar – não literalmente – a força do sexo como escudo para a morte na guerra; e um outro recuo ao passado, em palavras, quando diz a Ingrid que a guerra mais marcante foi na Bósnia, mas não extrapolamos efeitos diretos ou resquícios.

Quando Martha surge sozinha, deitada na cama a olhar para a natureza, ou quando se esparrama nas espreguiçadeiras coloridas – como no quadro de Edward Hopper (People in the Sun [Pessoas ao Sol]), uma réplica, claro, na sala da casa para a morte – a receber o parco sol no rosto como autêntica dádiva ou, por fim, quando coloca o creme na cara, põe batom vermelho nos lábios e veste a morte de amarelo como agradecimento ao sol, à vida, Pedro Almodóvar consagra o filme como um manifesto pelo direito à morte digna: ignorado e desprezado por muitos, ainda.

The Room Next Door, de Pedro Almodóvar (2024)
Visionado na Sala do Cinema Ideal