'Somos Dois Abismos', de Kopal Joshi

O luto na solidão

‘Somos Dois Abismos’, de Kopal Joshi: o luto na solidão
| DA VAGA DE SALA – Especial IndieLisboa

Na apresentação que antecedia o visionamento de dois filmes numa mesma sessão, ontem à noite no Cinema São Jorge, falava-se da forma como a curta ‘Claridade’ (2025), de Mariana Santana, e a longa-metragem ‘Somos Dois Abismos’ (2025), da indiana (radicada em Portugal) Kopal Joshi, dialogavam uma com a outra, mesmo sem se conhecerem; daí surgirem juntas na abertura da Competição Nacional do IndieLisboa 2025. Já na minha mente, ‘Somos Dois Abismos’, o filme que efetivamente me levou à Sala Manoel de Oliveira para arrancar este DA VAGA DE SALA – Especial IndieLisboa, dialogou mais com ‘Sob a Chama da Candeia’ (2024) , de André Gil Mata, filme que, além do escrito, originou também conversa com o realizador no Postal-Filme . E porquê? Por causa do luto, e do seu exercício, precisamente no lugar – a casa, sempre a casa – onde a presença de quem morre fica impregnada, fazendo com que o ato de fazer o luto para quem lá fica – a viver na casa – seja um ato contínuo, permanente, mesclando tempos: o passado, o presente e o futuro. Kopal Joshi, estreante em longas -metragens, rumou à Serra da Estrela em busca do Covão dos Conchos (uma lagoa artificial situada em pleno Parque Natural, relativamente próxima da aldeia do Sabugueiro) e desencantou, por entre as montanhas, Carlos, um velho-viúvo-solitário, que escolheu a escrita como veículo para o tal exercício (contínuo, permanente) do luto – perdeu a mulher há pouco mais de dois anos.

De eremita por vocação, na vida de casal com a esposa – entretanto falecida -, a eremita por obrigação, vergado a uma solidão efetiva e impiedosa, assim conhecemos Carlos, cujos cabelos brancos encontram extensão nas longas barbas, em singela harmonia cromática com o manto de neve que a câmara de Kopal nos dá logo de entrada, serra acima, num travelling lateral, inclinado. A casa de Carlos, embutida na montanha, é acolhedora por fora, mas escura, apagada, por dentro. Retrato, a retrato, Kopal poisa a câmara, pausadamente, para que conheçamos o rosto, em diferentes tempos, de Trudi, a mulher para quem Carlos escreve, imprime, lê e relê cartas – monólogos que agora, com a presença (temporária) da jovem Kopal em casa dele, encontram alternância e correspondência nos diálogos. O foco é o rosto de Carlos, em grande plano, iluminado no escuro, enquanto exerce, pela leitura de palavras que só a ele pertencem, o luto. Assim como Kopal, ficamos nós também, espectadores, a ouvi-lo; e a refletir sobre como a morte pode matar também quem fica, numa aliança concertada com a solidão, que ela, a morte, provoca. E quando sentimos que as lágrimas vão desaguar no rosto de Carlos, eis que Kopal escurece o ecrã na íntegra – o momento é de sentir e não de ver. Para ver e sentir em simultâneo, e até para nos tirar da casa escura, Kopal (ela que é também diretora de fotografia, inclusive do filme) abre o horizonte, por serra e céu, com planos gerais de tirar o fôlego, deixando-nos ficar, como se estivéssemos à janela ou à varanda, de dia, mas também à noite, aproveitando a luz da lua; planos gerais sempre acompanhados pelo som da fauna que ciranda – dar voz à serra -, sem se coibir, arrojadamente, de injetar, de quando em vez, ondas sonoras, perfurantes, que entram pela alma adentro, até às entranhas  – Kopal e a natureza; Carlos e a esposa falecida: ligações profundas.

Nesta espécie de terra de ninguém entre não-ficção, ou documentário, e ficção, a jovem realizadora indiana observa a realidade, condiciona-a parcialmente, pela câmara, claro, mas também pela presença efetiva que passa a ter na vida de Carlos, trasladando isso para a própria história que o filme narra. Vi em ‘Somos Dois Abismos’ uns laivos de No Home Movie (2015), o derradeiro filme de Chantal Akerman, em que esta filma os últimos momentos de vida da mãe, dentro de casa, mas sempre em alternância com imagens de natureza, por mais árida que ela fosse.

‘Somos Dois Abismos’, de Kopal Joshi (2025)
Visionado no IndieLisboa, Cinema São Jorge