Prelúdio para uma visita que pode nunca chegar a acontecer.
Maurizio Cattelan (n. 1960) não é um artista com quem reflicta e se isso aconteceu com Comediante (2019) deu-se pela negatividade, porque, de facto, me intimou a tecer considerações que apaziguaram a raiva que senti. Philippe Vergne, o director do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, poderá dirigir a esse eclipse imagético as mais rasgadas subtilezas dialécticas, mas continuarei a entender Comediante comoum sintoma do absurdo que desborda por todos os lados num Mundo fumigado pela guerra e pela violência discursiva. Reporto-me a Serralves porque aí permanece uma exposição vasta de Maurizio Cattelan, intitulada Sussurro: entre 4 de Julho deste ano e 11 de Janeiro de 2026, dispersa pelo Parque e pela Casa de Serralves. Pode ler-se, no folheto que acompanha a exposição e já no parágrafo final, o seguinte: “Os aforismos visuais de Cattelan são exercícios de desvio e reencaminhamento, pirateando uma vasta base de dados de imagens profundamente enraizadas na história, na cultura, nos sistemas de crenças e nos nossos tabus. Sussurro fala alto para quem queira ouvir, e também para quem não queira.”
Neste sentido, diga-se que L.O.V.E. falou mais alto e aqui estou a escrever sobre uma visão que se instaurou à medida que via desfilar nas redes sociais os dedos do meio de diversos visitantes da exposição. Em Serralves encontra-se, na verdade, uma réplica desta escultura que, em conjunto com o pedestal que a eleva, mede 11 metros; a original, que provocou polémica aquando da sua instalação no ano de 2010, pode ver-se na Plaza degli Affari de Milão, mesmo em frente à Bolsa de Valores. Outras forças, que não as do capital, operaram há 15 anos e L.O.V.E. ficou de pedra e cal naquela praça, até hoje. Agora visita Portugal, em réplica: repito. Pelo que me foi dado observar, portanto, verifica-se a tendência para recrudescer o gesto idiossincrático plasmado pela mão crispada, hirta e tensa: não detectei uma, nem duas, nem três vezes, mas inúmeras, as pessoas que empunham o chiste.
Convém, no entanto, fazer reparar que L.O.V.E. é um acrónimo que faz desfilar o L de Liberdade, o O de Ódio, o V de Vingança e o E de Eternidade; esta circunstância vem derramar sobre Il Dito, como também é conhecida esta escultura, uma, digamos, chuva realmente ácida, acre e violenta. Nada que não esteja já inscrito naquela mão crispada, hirta e tensa; porque o gesto do dedo médio isolado que tantas pessoas têm feito tendo como duplo fotográfico L.O.V.E., opera, não por vontade, mas por impotência. Ou seja, estando os restantes dedos decepados, pusilanimemente ausentes porque cortados, aquela mão transporta para a impossibilidade, para a amputação, para a degradação. Assim, o que poderia ser uma mão aberta, imaginada a partir do único dedo que restou, e tanto dada ao cumprimento, como à prestação de ajuda, transforma-se num símbolo de agressividade latente. Estamos em tempos em que, no lugar de se “darem cinco”, se mandam as pessoas para Il Dito, e pelo que me é dado observar através das reacções que recolhi, parece normal.
L.O.V.E. parece ser, assim, uma obra-zénite nesta exposição de Maurizio Cattelan.